Óscares 2022
Na noite de 27 de Março de 2022, após as devidas vénias ao teatro feitas por ocasião da efeméride a que corresponde essa data, as luzes da ribalta mundial incidiram sobre o Teatro Dolby em Los Angeles, onde há 20 anos certos que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tem vindo a fazer a […]
Na noite de 27 de Março de 2022, após as devidas vénias ao teatro feitas por ocasião da efeméride a que corresponde essa data, as luzes da ribalta mundial incidiram sobre o Teatro Dolby em Los Angeles, onde há 20 anos certos que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas tem vindo a fazer a sua entrega dos famosos Óscares. Por sua vez, em Coimbra, decorreu a partir a dos estúdios da Rádio Universidade de Coimbra a igualmente tradicional cobertura em direto dessa cerimónia, onde se discutiu sobre as piadas, os vestidos, os prémios e os filmes.
Uma emissão assumidamente sui generis, na medida em que este ano parece correr mais tinta sobre uma altercação entre dois atores/comediantes que sobre qualquer dos vencedores ou perdedores. Por sua vez, a emissão da RUC, contando com um painel de locutores de programas de teor cinéfilo quer atuais quer históricos da sintonia dos 107.9 FM, focou a conversa sobretudo nesses aspetos de mérito e qualidade do leque de filmes que se encontravam nomeados às estatuetas douradas. Até porque a cerimónia em si – excetuando tal momento insólito – provou ser das mais mortiças no que toca a entretenimento, apesar dos esforços da Academia em aprimorar a emissão de modo a conquistar uma audiência já ela também algo moribunda nos costumes televisivos, por se encontrar rendida a redes sociais como o Twitter.
Foi precisamente ao criar categorias de “prémios” internáuticos a partir dessa rede social – #OscarsFanFavorite e #OscarsCheerMoment, cuja votação declamou os filmes “Exército dos Mortos” e “Liga da Justiça” como respetivos vencedores – ou a atribuir certos galardões uma hora antes da cerimónia de modo a que os agradecimentos fossem editados e oportunamente transmitidos no decorrer da emissão em direto que se procurou dar fulgor a este evento televisivo, tendo-se igualmente retornado à velha tradição de ter uma chefia na apresentação da cerimónia. Posição essa partilhada por três comediantes norte-americanas: Regina Hall, Amy Schumer e Wanda Sykes. Foi a segunda tentativa da Academia em abandonar o conceito de anfitrião-mor na entrega dos prémios, após a estreia deste modelo em 2011 com a dupla de atores James Franco e Anne Hathaway. No entanto, onze anos volvidos, essa técnica continua a mostrar-se frágil, na medida em que acaba por fragmentar não só o teor humorístico mas a própria coesão logística no desenrolar da cerimónia.
Uma quebra crucial que só veio a realçar a confirmação desastrosa do fator “corte-e-costura” da mencionada entrega de certos prémios a receber edição póstuma. Talvez a inovação que mais controvérsia gerou pré-cerimónia, pois tratavam-se de categorias que assinalam vertentes cruciais à feitura de metragens, entre os quais Melhor Banda Sonora ou Melhor Montagem. Ironicamente, o atual Presidente da Academia fez carreira nesta última categoria apesar de nunca ter ganho um Óscar, sendo a incongruência editorial desta cerimónia testemunho probatório desse teor editorial. Igualmente crude foi a inclusão dos mencionados galardões votados através do Twitter, uma espécie de prémios do público que segue o evento via redes sociais. Homenagens que acabaram por ser desvirtuadas por completo, na medida em que fãs do realizador Zack Snyder ou da cantora Camilla Cabello fizeram-se ouvir em massa, independentemente do mérito ou qualidade dos respetivos filmes vencedores.
Porém, apesar do mérito geralmente ser ofuscado pelo glamour e luxo no que diz respeito à escolha de nomeados e vencedores dos Óscares, a conclusão partilhada pelo plantel de comentadores na emissão da RUC foi precisamente a de que o catálogo de filmes destacados com nomeações foi talvez dos mais fracos de sempre. Opinião generalizada esta que se desdobrou em várias teorias, desde a indústria cinematográfica de Hollywood estar ainda em período de recobro da pausa pandémica criada pelo Covid-19 até à mais tradicional injustiça da Academia ignorar filmes que não possuem uma força financeira e/ou promocional suficiente a levar filmes meritórios para o (ou pelo menos para perto do) palco. Como prova disso mesmo, embora “No Ritmo do Coração” fosse apontado como a grande sensação do cinema independente devido à sua estreia no Festival Sundance de 2021, era igualmente o cartão de visita do serviço de streaming da Apple TV+, que está longe de ser uma marca de pequena escala.
No entanto, precisamente no que diz respeito a vitórias, foi esse o filme que mais surpreendeu e quebrou tabus na entrega do prémio principal. Apesar de há já alguns anos que plataformas de streaming como a Netflix ou a Amazon estarem a competir para alcançar o almejado Óscar de Melhor Filme, a honra acabou por ir para o serviço da Apple, quando há meia-dúzia de anos muitos realizadores apontavam estas longa-metragens como meros telefilmes, uma opinião algo menosprezadora mas igualmente partilhada por alguns dos comentadores na emissão da RUC. No entanto, há somente a apontar que tal vitória é mais um sinal dos tempos e de como a hierarquia de estúdios de Hollywood parece evoluir a largos passos para gerar conteúdo para canais. Aponte-se igualmente o facto de a Paramount ter criado o seu próprio serviço de streaming ou estúdios sonantes como MGM ou 20th Century Fox terem sido respetivamente adquiridos pela Amazon e pela Disney, de maneira a providenciar conteúdo para os seus serviços de streaming.
Além da grande vitória dessa noite, o filme de Sian Heder também recebeu destaque ao receber os prémios de Melhor Actor Secundário (pela prestação de Troy Kotsur) e Melhor Argumento Adaptado (atribuído a Heder, que também assinou o argumento). Este último prémio foi igualmente alvo de uma grande controvérsia meritocrática, na medida em que muitos apontaram o facto de o filme ser uma mera tradução do filme francês de 2014 “A Família Bélier”. No entanto, aponte-se que aqui não houve qualquer premiação revolucionária, pois “The Departed – Entre Inimigos” de Martin Scorsese foi o grande vencedor dos Óscares de 2006, tendo ganho Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento Adaptado. Este último prémio foi inclusive atribuído a William Monahan, que veio mais tarde admitir publicamente que o seu único trabalho enquanto argumentista foi o de aperfeiçoar uma tradução pobre do guião de “Infernal Affairs – Infiltrados”, filme de Hong Kong de que Scorsese era fã.
O outro grande vencedor e sem grandes objeções ou surpresas revelou-se nas categorias de nível técnico: “Duna”, a mais recente adaptação cinematográfica do romance de ficção científica de Frank Herbert a cargo de Denis Villeneuve, recebeu seis estatuetas no total (Melhor Montagem, Melhor Fotografia, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Design de Produção, Melhor Som e Melhor Banda Sonora), sendo que quatro delas foram atribuídas uma hora antes da cerimónia começar e divulgadas na conta de Twitter de Academia. Assim, tais tentativas da Academia em caprichar a cerimónia para um público rendido à Internet saíram logradas, tendo apenas providenciado às casas de apostas uma vantagem em determinar o vencedor da noite em termos quantitativos. Por sua vez, “Os Olhos de Tammy Faye”, o terceiro vencedor múltiplo da noite além de “No Ritmo do Coração” e “Duna”, acabou por ocupar o segundo lugar no pódio qualitativo, pois um dos prémios que arrecadou – a acompanhar a vitória da estatueta de Melhor Maquilhagem e Penteados – foi o de Melhor Actriz, atribuído à prestação de Jessica Chastain.
Do restante leque de prémio, vários foram os vencedores singulares de um Óscar: “West Side Story” foi destacado com o prémio de Melhor Actriz Secundária (para Ariana DeBose), “Encanto” e “Cruella” dos estúdios Disney receberam as honras respetivas de Melhor Filme de Animação e Melhor Guarda-Roupa, “Conduz o Meu Carro” ganhou Melhor Filme Internacional (a segunda vez que um filme japonês recebe tal distinção, depois de “Despedidas” em 2009), “Summer of Soul (…Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)” de Ahmir ‘Questlove’ Thompson foi o vencedor de Melhor Documentário, enquanto “Belfast” rendeu a Kenneth Branagh o prémio de Melhor Argumento Original (o primeiro da carreira do cineasta, após ter sido nomeado em variadas categorias) e ‘No Time to Die’, tema-título de “007: Sem Tempo Para Morrer” valeu à participação da cantora Billie Eilish o prémio de Melhor Canção Original.
Por último, os dois prémios principais atribuídos a figuras imponentes de Hollywood: Melhor Realizador foi para Jane Campion por “O Poder do Cão” (que assim se torna a terceira mulher a ganhar este prémio, depois de Chloe Zhao ter ressuscitado a iniciativa o ano passado por “Nomadland – Sobreviver na América”) e Melhor Actor para Will Smith pela sua prestação enquanto Richard Williams (pai das tenistas norte-americanas Venus Williams e Serena Williams, que estiveram presentes na cerimónia, tendo inclusive apresentado o número musical que inaugurou a mesma) no filme biográfico “King Richard: Para Além do Jogo”. Irónico que esta cerimónia tenha sido mais discutida pela presença marcante de Smith, mas não necessariamente pelo galardão atribuído ao ator. Tal sensacionalismo em torno de um pequeno episódio irreverente ofuscou qualquer um dos filmes, méritos ou homenagens a que a Academia se prestou a apresentar, incluindo toda a iniciativa de festejar os aniversários de filmes como “O Padrinho”, “Pulp Fiction” ou “Branco Não Sabe Meter”.
Embora a tradição certamente não seja o caminho a seguir e se preze o fulgor da Academia em arriscar fora da zona de conforto, a verdade é que a inovação experimental pode deixar a desejar e, a provar isso mesmo, temos esta cerimónia de Óscares 2022 que certamente figurará na história como das mais memoráveis devido a um breve momento, mas das mais insípidas no geral do seu histórico com quase cem anos.