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29.11.2023POR Francisco Matos

Mucho Flow 2023 – 10ª Edição

Desde o regresso de nomes incontornáveis à sua história, a outros que se revelaram pela primeira vez em Portugal, a equipa do Mucho Flow fez tudo parecer fácil.

Não deve ser fácil organizar um festival. Ainda menos um com a qualidade inovadora do Mucho Flow. Ainda mais difícil será organizar uma edição que marque os 10 anos de um festival – sempre em metamorfose –  e que encapsule todas as suas honras em cerca de 72 horas. Em 2023, a equipa do Mucho Flow fez tudo parecer fácil. Desde o regresso de nomes incontornáveis da sua história, a outros que se revelaram pela primeira vez ao público português, fica aqui o parecer da Rádio Universidade de Coimbra sobre a 10ª edição do festival de Guimarães.

Pelo segundo ano de seguida, foi-nos cedido o privilégio de cobrir o festival Mucho Flow. Voltámos com as expetativas ao rubro, depois de uma 9ª edição que para sempre viverá nas nossas memórias, para absorver a cultura que floresce nos recantos das ruas tradicionais da cidade. Admitidamente, o magnífico cenário de Guimarães é suficiente para entreter qualquer comum transeunte que tenha a sorte de lá passar. No entanto, um festival como este é o tipo de acontecimento que transcende a normalidade e o mero entretenimento. Foi nos contornos desta cidade única que as nossas expetativas foram arrebatadas e as saudades ainda mais vincadas.

Espetáculo Visual de Amnesia Scanner, no CCVF

2/11

 

A 10º edição do Mucho Flow teve início a dia 2 de Novembro, mas não da forma habitual. Para marcar esta data, o festival arrancou com um warm-up menos focado na música. Em vez dos deslumbrantes concertos que caracterizam o festival vimaranense, as primeiras horas foram dedicadas ao diálogo, de forma a comunicar o valor do trabalho feito nas sombras dos palcos e atrás das portas fechadas dos escritórios.

Começou, às 16:00, com A Case for Curatorship, onde Marta Mestre, curadora-geral do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG), Paulo Brandão, diretor artístico e ex-curador da Casa das Artes de Famalicão, e Pedro Santos, programador musical na CulturGest em Lisboa, abordaram a delicada tarefa de trazer ao público a arte das ruas, pela lente institucional, numa hora mediada por Ana Neiva, professora de Arquitetura na Universidade do Porto.

Inevitavelmente, alguns dos pontos apresentados revelaram-se valiosos na contextualização do Mucho Flow 2023. Foi, principalmente, transmitida a necessidade de trabalhar para e na comunidade e de unir divergências através do choque cultural, tanto como o cuidado de executar uma seleção que reflita a vontade atual da mesma. Essencialmente, tentar uma aproximação de costumes através de sugestões temáticas que se justapõem, harmoniosamente.

A estas palavras associamos figuras como o deturpado folk dos irlandeses Lankum, o frenesim celeste dos britânicos Lunch Money Life, os versos castelhanos entoados pelo angelical pablopablo, as fusões mutantes da grega Abyss X e as facadas de rave da suíça Aïsha Devi. Todos de pontos diferentes do globo, convergiram no norte português para, de formas e com técnicas variadas, apresentarem um bocado da sua cultura e, com ela, das suas vidas. O primeiro contacto com a mais recente edição do Mucho Flow permitiu emoldurá-la de forma pertinente e compreensível.

Abandonada a sala de conferências do CIAJG, ao pé da entrada da Blackbox, Maria Miguel Pratas e Miguel Ribeiro já tinham iniciado o projeto LOW INTERSECTION OF BENIGN MACHINES, desenvolvido no âmbito da Licenciatura em Som e Imagem da Escola das Artes do Porto. Pelo largo hall branco, encontravam-se expostas, numa lona branca, uma série de peças de cerâmica distribuídas em redor de Maria Pratas. Ao lado, Miguel Ribeiro aninhava-se frente à grande mesa de mistura onde manipulava o som exercido pelo toque de Pratas nas peças. Ao longo de, sensivelmente, 45 minutos pudemos escutar a progressão sonora que a cada gesto se assoberbava, em primeira instância de forma delicada, no final em paredes densas e etéreas de vapor e ruído. A performance visual era estéril e desprovida de adornos e, em muito, contribuiu para um espaço de introspeção, em antecipação do segundo momento de conversa “Into the Atavic Forest”, que, para realmente entranhar, pedia clareza mental.

LOW INTERSECTION OF BENIGN MACHINES, no CIAJG

 

Um dos temas mais debatidos atualmente no mundo das artes é: podem ser considerados Arte produtos artísticos produzidos por meio de inteligência artificial? Into The Atavic Forest começou às 18:30 para acrescentar uma voz dinâmica e arrojada à discussão. Numa conversa que serviu para elucidar os espectadores de como funcionava e de qual o propósito desta mítica performance, a Atavic Forest tornou-se num objecto quimérico para as mentes dos ouvintes. Um ser gerado a partir de inteligência artificial, cujo objectivo é a criação e representação de uma floresta enquanto “sonha”. Isto é possível através do desenvolvimento de um cérebro que procura imagens com características de florestas, como fungos, raízes, árvores, cogumelos, etc., numa vasta biblioteca. Em permanente transformação, os sonhos estão dependentes da quantidade e qualidade destas. Atavic Forest começa por representações constantes e rudimentares de um espaço natural cuja transfiguração resulta em imagens móveis, respondentes ao som proporcionado por Jonathan Uliel Saldanha que, através da música lhe administra drogas em quantidades diferentes.

Salvo seja, não entendendo muito do funcionamento por trás do projeto, este aguçou a curiosidade das poucas pessoas que se juntaram na sala de conferências do CIAJG. Certamente não ficariam desiludidas. Sendo assim, com conversas de parte, os primeiros concertos do Mucho Flow iam começar.

Um warm-up não o seria sem haver uma preparação para as facetas do festival que pretendemos desconstruir – ou apenas usufruir. Às 21:30 começava a performance Atavic Forest, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF). Quando chegámos, confrontamo-nos com um grande ecrã, à frente do qual se aglomeravam silhuetas de pessoas, iluminadas apenas pelo degradê psicadélico de cores disparadas pelo ecrã. No meio de progressões de cogumelos, raízes, árvores e céus soturnos, acompanhámos o respirar da floresta em combustão pelo noise industrial de Jonathan Uliel Saldanha. Cada pontada de sintetizador orquestrava viagens pelo inconsciente, por vezes à velocidade super sónica dentro de túneis em constante mutação, outras estagnadas no desenrolar molecular da natureza artificial. Certamente, um projeto único cujo desenvolvimento rompante promete mais e diferentes maravilhas em performances futuras.

Atónitos, desgastados e com vontade de mais, subimos ao Foyer para assistir ao último espetáculo do primeiro dia de Mucho Flow. Na ampla sala, acima do auditório, pablopablo já se preparava para tocar os primeiros acordes, em apresentação do seu mais recente LP homónimo, lançado em 2022. Dele podemos ouvir temas como Azul Safira, Mandela Place e Perfume, retratados de forma despida e intimista, com ocasionais explosões de bateria e melodias distorcidas. Foi nestes picos de som pontuais que pudemos confirmar a versatilidade e a razão pelo reconhecimento ascendente do artista de Madrid. 

pablopablo, no Foyer do CCVF

Terminado o warm-up, num dia mais relaxado, incomum aos horários habituais do Mucho Flow, conseguimos antecipar as experiências, tanto drenantes quanto refletivas, que a equipa de programação tinha preparado para os dois dias principais do festival.

 

3/11

 

Essa experiência começou de forma inesperada, ao sabermos do cancelamento do concerto de Bengal Chemicals, que iria acontecer na Blackbox do CIAJG às 18:00. Enquanto a ideia de ver um projeto dilacerante dissipava, regressámos ao conforto da edição do ano passado, através das paisagens sonoras de Canadian Rifles. Em semelhança a Luís Fernandes, que também tocou na Blackbox do CIAJG no Mucho Flow 2022, pudemos matar saudades do labirinto de membros espalhados pela escuridão, ao escutar o produtor do Porto, fundador da editora Eastern Nurseries, que trouxe um leque de sonoridades diferentes mas familiares. Do drone nebuloso aos cânticos sintéticos das máquinas, a tempestade de reverberação de Canadian Rifles sedou o público festivaleiro em preparação para a longa noite de espetáculos que se avizinhava, enquadrando visitantes de outras cidades na humidade e nevoeiro de Guimarães.

O próximo concerto inaugurou o Teatro Jordão. Não nas habituais garagens, mas sim no Auditório, onde Daniel Blumberg já se encontrava, inerte na escuridão do palco. Iluminado por um foco de ténue luz amarela, Blumberg apresentou o álbum GUT quase na íntegra. Nos momentos em que se mostrava ao público, cantava de forma repetitiva, pisava o sampler agressivamente, numa performance privada de alguma leveza da música gravada em estúdio, e pintava as paredes do Auditório com o hirto tom surrealista presente em todas as disciplinas da sua arte. Ainda agora tínhamos começado e já assistíamos a um dos grandes espetáculos desta edição.

Agora sim, em favor de um clima mais descontraído, abandonámos a cariz académica do Auditório para reavivar a memória das garagens do Teatro Jordão. Membro dos Mão Morta, Miguel Pedro preparou uma hora de música ambiente eletroacústico, que já ecoava nos recantos da infraestrutura do teatro quando encontrámos rumo no meio da multidão. Num espetáculo discreto e repleto de nuance, a improvisação permaneceu fresca e revitalizou as energias, após a performance drenante de Blumberg. Com 40 anos de experiência, Miguel Pedro conseguiu arranjar forma de criar uma ode ao tradicionalismo da sua carreira, mantendo-se atual às necessidades do, maioritariamente, público jovem do Mucho Flow.

Logo a seguir, entrou em palco uma das artistas mais atuais da cena de música eletrónica. Evita Manji, produtora de club experimental etéreo, trouxe uma hora de ritmos abafados por múltiplas camadas vocais e melodias de sintetizador idílicas, no âmbito do seu mais recente álbum Spandrel?. No meio do fumo e do jogo de luzes monocromático, as camadas mais jovens alinharam-se na front line para interagirem com Evita, quando esta se ajoelhava ao nível da plateia para cantar nas suas caras. Apesar de ter sido uma performace com características grandiosas o concerto provou ser mais intimista do que o antecipado, principalmente por causa da envolvência do público de Guimarães. Apesar de às vezes se tornar monocórdico, a dança só parou em pequenos espaços contemplativos onde o vapor eletrónico susbtituía o glitch da batida.

Evita Manji, nas garagens do Teatro Jordão

Noutro panorama físico, estava na hora de recolher na Tasquinha do Tio Júlio e recarregar forças vitais para os concertos estrondosos que viriam no CCVF e, mais tarde, na discoteca do Teatro S. Mamede.

Heith, a nosso ver, era um dos imperdíveis desta edição. Muitas vezes as grandes expectativas que antecipam um espetáculo podem ser enganadoras. Entre ideias de realização pessoal e inter-comunicação extra corporal, na formação de uma ligação simbiótica com as caras e mentes que criam o que gostaríamos de ter sido nós a criar, torna-se fácil ignorar pontos positivos se tal espetáculo não for abordado com prudência. Heith não foi um destes casos. Mesmo chegando atrasados, o que conseguimos experienciar foi tão gratificante como avassalador. O espetáculo de luzes foi assombroso, ora na escuridão, ora nos flashes convulsivos. Daniele Guerrini veio acompanhado com mais dois artistas, um na bateria e outro com um papel polivalente, entre flautas e percussão complementares, e juntos formaram peças de noise industrial ritual intensos pela beleza e agressividade. O ritmo foi lento mas sempre ascendente, quando acompanhado pelas projeções labirínticas, renderizadas no Blender, facilitando a imersão total nas sonoridades e dinâmica de palco entre os três. Sem dúvida, deixou saudades. Se não deixou mais foi porque o ato seguinte era mais um imperdível, de nome Amnesia Scanner.

Em boa verdade, a quantidade de estímulos que viriam na hora seguinte dificulta muito a tarefa de descrever o que vimos. As imagens em constante mutação, as cores que derretem intervaladas por strobe lights cataclísmicas, o baixo que perfura a caixa torácica e torna o público numa massa uníssona, a vontade vital de dançar contraposta com a imobilidade surpresa de quem assiste a um atentado. Tudo isto numa hora de eletrónica hyper gerada por dois espectros no grande palco do CCVF. Sendo esta a segunda vez que a dupla de Berlim comparece numa edição do Mucho Flow, ficamos ansiosamente à espera da terceira.

Amnesia Scanner, no CCVF

 

Foi desta maneira que o CCVF encerrou para o dia, dando lugar ao Teatro S. Mamede. Após o set de Bass Music de LCY e dos ritmos carregados de energia de OK Williams, fechou a noite a sempre célebre King Kami. Artista que pisou o Palco RUC em 2021 e o Les Siestes Electróniques em 2022, em Coimbra, King Kami trouxe um set fresquíssimo ao Mucho Flow. Focado em Bass Music e Drum and Bass, a artista fez toda a dance floor dançar freneticamente com seleções divertidas, sensuais e pesadas.  

4/11

O último dia da edição de 2023 do Mucho Flow iniciou com mais um espaço dedicado ao experimentalismo que a música portuguesa tem para oferecer. Na Blackbox do CIAJG, podemos assistir a Tormenta. Ao grupo composto por Rui Carvalho, na guitarra, e Ricardo Martins, na bateria, juntou-se Óscar Silva no baixo. Por volta de 40 minutos de performance, a violência não diminuiu à medida que o punk progressivo, que muito marcou o rock português da década passada, se desenrolava ao longo de peças de 7 a 10 minutos. Posto isto, a diversão era palpável em palco, não obstante da falta de pessoas na plateia, e permitiu reconhecer a amizade que brota entre os três artistas, algo que tivemos a oportunidade de explorar numa entrevista posterior, realizada no Teatro Jordão. Foi com um estrondo nacional que os concertos no CIAJG terminaram.

Tormenta, na Black Box do CIAJG

O público foi redirecionado para outro último concerto, desta vez no Auditório do Teatro Jordão. Lucinda Chua não só fechou a sala como deu o último concerto da sua tour, até ao resto do ano. Um dos maiores nomes desta edição que encantou e apaixonou o público, numa performance elegante e carinhosa por parte da Lucinda. Em contraste com o concerto misterioso de Daniel Blumberg numa sala majestosa onde apenas um pequeno foco amarelo atraía as atenções para o artista, Lucinda Chua foi iluminada por belos focos coloridos que mistificaram o ambiente entre camadas de fumo transparente.  

Foi então o primeiro concerto a solo da artista Londrina em Portugal e o último de 2023, onde apresentou faixas do seu mais recente álbum YIAN, assim como trabalhos antigos. Com o seu violoncelo e piano, Chua, solitária no palco, inundou a audiência com a sua majestosa e angelical voz. Um concerto perfeito para se apaixonar pelos seus trabalhos, onde apenas o conforto embalou o publico. 

Após o encantador concerto da Lucinda Chua, fomos completamente baleados por uma exorbitante quantia de noise. Leviatã Magnético ou Experiências em Automagnetofagismo foi a performance que nos esperava noutra novidade desta edição de aniversário do Mucho Flow. O uso de um túnel, na estrutura do edifício do Teatro Jordão, foi uma nova adição breve, porém impactante, à experiência deste festival. Instalação criada por Benjamim Gomes, projeto que faz parte de um projeto teórico-prático que desenvolveu no âmbito de Mestrado em Cinema na Escola das Artes do Porto, cujo apenas teve 3 apresentações públicas, todas com um certo grau de obscuridade.

O projeto criou dúvidas e suscitou a procura de respostas. Desta maneira, procurámos contacto direto com Benjamim, que nos elucidou nalguns aspetos. Tratava-se de uma apresentação onde a manipulação acaba de certa forma com o corte de loops de VHS. A partir daí apenas “acidentes” do sistema acontecem. Na parte visual, Benjamim estabiliza o loop o máximo possível para este ser lido sem encravar no VCR. Na parte sonora, controla a equalização do ganho e do volume de 3 canais áudio, um que recebe o sinal visual do VCR e os outros dois que recebem o som stereo separados. Todos estes valores são reinjetados num mixer de vídeo, onde qualquer ajuste no som interfere com o visual. Tudo interconectado pela mesma fonte de eletricidade leva à inteferência geral, traduzível no output sónico e visual.

Jack e Spencer, de Lunch Money Life, nas gragens do Teatro Jordão

De seguida, Lunch Money Life. Tendo a gratificante oportunidade de entrevistar, no dia anterior, Spencer e Jack, os dois irmãos à frente do grupo, as nossas expetativas eram elevadíssimas. Tal dito, tal feito. Tínhamos antecipado um concerto, principalmente de jazz, mas, 5 minutos após o começo eramos bombardeados com sonoridades de doom das guitarras, sintetizadores góticos e gritos arrepiantes de Spencer.

“Acreditão no amor?”. É a pergunta que Spencer põe, interrompendo a intensidade do concerto em antecipação da balada In Jesus Love. As cabeças do publico mudaram de ação. Se num momento saltavam de um lado para o outro, agora estavam apenas fixas, pois não queriam desviar a atenção da performance apaixonante de Lunch Money Life. Num momento surpreendentemente intenso, quem queria uma desculpa para verter uma lágrima, ali a teve.  

Numa hora de puras emoções, a performance desta banda foi transparente e contagiosa, desde as batidas viciantes de Stewart Hughes, aos baixos pesados de Luke Mills-Pettisgrew. Das rasgantes notas de Sean Keating, às destrutivas e imersivas composições feitas pelos irmãos Spencer e Jack, temperadas pela magnífica voz e entrega de um Spencer que gritava, dançava e lançava os braços aos ceús. Um dos melhores concertos desta edição do festival que puxou a envolvência do público em resposta à entrega da banda. No final deixou Spencer a atirar t-shirts e vinis do mais recente LP dos Lunch Money Life, God’s Phone

Drenados, precisámos de umas horas para nos recompormos, face aos concertos de Abyss X e Aïsha Devi.

Abyss X, no CCVF

A artista que abriu o CCVF no último dia de Mucho Flow deste ano foi Evangelia VS, mais conhecida como Abyss X. Após o lançamento do seu mais recente LP concetual Freedom Doll, estávamos à espera da atitude assertiva e da abordagem vocal simultaneamente ríspida e delicada da cantora grega. Para além disso, a incorporação de guitarras elétricas reminiscentes do rock alternativo norte-americano dos anos 90 enquadrava o concerto de Abyss X como um dos mais antecipados, por não se saber bem o que esperar. Apesar de alguns pontos altos como a energia e dinâmica entre Evangelia, o baterista e a guitarrista, o espetáculo de luzes equilibrado e correspondente à explosividade dos temas tocados e as danças performativas de Evangelia, a performance não correu como planeado. Problemas técnicos com o microfone foram notórios, tal como a crescente frustração do grupo. Por vezes, o concerto chegou a ser interrompido por Evangelia para advertir os técnicos de luz e som. No meio destas paragens, uma boa parte da plateia abandonou o CCVF, à espera do set de Aïsha Devi.

Sem surpresas, a fasquia voltou a elevar-se, e de que maneira.

Foi por volta das 00:30 que o CCVF tremeu. As strobe lights compulsivas mal permitiam perceber o que se estava a passar em palco, mas o baixo grotesco, expulsado pelo imenso aparato sonoro que o rodeava, tornava tudo bem claro. Aisha Dëvi trouxe tudo o que de melhor há no seu catálogo, numa hora de set que foi do meditativo ao club explosivo, com sintetizadores celestiais e frequências de baixo hipnotizantes. O seu cantar erudito flutuava pelas texturas da batida de forma graciosa, grandiosa e imaculada. Da primeira fila aos cantos, todo o CCVF se uniu numa dança frenética em comunhão no espetáculo da suíça, Aïsha Devi. 

Aïsha Devi, no CCVF

Os festivaleiros mobilizaram-se uma última vez para o dance floor do Teatro São Mamede. Quem os esperava era, nada mais nada menos que, Evian Christ, um dos artistas mais aclamados desta edição do Mucho Flow. 

Depois de inúmeras colaborações, Evian Christ chegou a Guimarães após o lançamento recente do seu álbum de estreia, “Revanchist”, um projeto completo e avassalador, que transcreve todo um potencial sonoro bastante intenso. Posto isto, Evian Christ iniciou a performance com o hino das Champions League e, logo de seguida, a faixa que abre o álbum: On Embers. Foi uma performance imersiva e contemplativa. Evian Christ apresentou um set hipnotizante, onde as batidas serviam um propósito catártico, dando primazia a melodias angelicais e baixos ofegantes. Adicionalmente, o jogo de luzes foi um dos mais únicos da edição, focado à volta da silhueta do artista, que aparentava estar dentro de uma surreal bolha magnética. Um espetáculo destes aconteceu face a um público com expetativas mais inclinadas para a dança, do que para a contemplação. Isto traduziu-se na falta de atenção de uma boa parte da audiência que se entreteve a falar e no descontentamento demonstado por vaias de algumas almas perturbadas, no final do set.

Em maior concordância com as necessidades do público, entrou em palco Emma DJ. Na sua estreia nacional, Emma DJ deixou o público intrigado, pela última vez no Mucho Flow 2023. Apesar da quantidade de variados sets experimentais nesta edição, o artista conseguiu surpreender com os seus ritmos histéricos e misteriosos. Acabou por ser um dos sets mais divertidos e fez a sala toda dançar incontrolavelmente. Para os mais atentos chegavam melodias e samples conhecidas, misturas e transformações de faixas célebres, que abrangiam vários géneros como trap, pop e hyperpop. Subtilmente, Emma DJ conseguiu demonstrar todas as principais características das suas produções, numa hora de set tão viciante, que a maior parte do público só se apercebeu da ocorrência de problemas técnicos muito após eles terem começado, deixando a pairar pela sala o mesmo loop, nos últimos 5 minutos da performance. Independentemente do final, toda a performance foi uma surpresa e rapidamente tornou-se numa das melhores a que assistimos no Teatro S. Mamede.

Mais uma vez, DJ Lynce marcou presença  no festival vimaranense, desta vez para o fechar na sua totalidade. É um nome estabelecido nos circuitos nacionais e, pela primeira vez, entregou uma live de hardware artilhada por linhas de ácido e cadências cíclicas de percurssão. Do ponto de vista pessoal, a monotonia rítmica contrastou com os sets experienciados até ao ponto e desenquadrou a espiral crescente que Evian Christ e Emma DJ tinham construído ao longo da noite. No meio de peças extensas e pouco variadas, o set de DJ Lynce não refletiu as qualidades que o Mucho Flow tem para oferecer, muito menos enfrentado com a difícil tarefa de escrever a sua conclusão. Do ponto de vista coletivo, o DJ e promotor do Porto foi bem recebido pelo público e, na noite, um dos mais apreciados no Teatro S. Mamede. Terminado o set, o extâse era palpável e a satisfação geral o que certamente servirá como um ponto de orgulho para toda a equipa que desenhou e construiu este Mucho Flow 2023.

LCY, a abrir a noite no o Teatro S. Mamede

Acabamos este ciclo para louvar o trabalho da equipa por trás do Mucho Flow. Na celebração dos 10 anos de cultura que incessantemente trazem ao norte de Portugal, perpetuaram a frescura que os caracteriza, do ponto de vista da curadoria, das performances multidisciplinares a que tivemos o privilégio (sublinha-se a palavra) de assistir, até à abertura de comunicação que demonstraram à Rádio Universidade de Coimbra. Dificilmente se encontra um festival tão único como o Mucho Flow a nível nacional, onde a amplitude de espaços permite explorar performances digitais de avant garde, com tanta acessibilidade e compreensão por parte dos espetadores. Nesta edição despretensiosa, resumiram o melhor da cultura atual mundial e continuamente arrombaram as portas que limitam os horizontes do povo português.

Se uma cidade é fruto da sua história e da cultura que a pinta nos murais da humanidade, todas as pessoas envolvidas no Mucho Flow e que contribuíram para o seu estado atual, continuam a caiar as cores mais vívidas e deslumbrantes na cidade de Guimarães.

Obrigado e até para o ano!

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