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Mucho Flow 2022 – 9ª Edição

Se em 2019 o festival vimaranense Mucho Flow se consolidou como uma refrescante alternativa à organização caótica de outros com uma maior envergadura, a edição de 2021 renovou o estatuto do festival como um colosso por se revelar. Em 2022, a Rádio Universidade de Coimbra assistiu à revelação.

A tão esperada 9ª edição do Festival Mucho Flow, em Guimarães, começou no dia 4 de Novembro com toda a graciosidade e violência que o repertório de artistas recrutados prometia. Tanto prometiam as performances que cumpriram e ainda deixaram saudades.

Admitidamente, a edição de 2022 do Mucho Flow não é fácil de descrever. Seja pela variedade de artistas, em sonoridade, estética ou abordagem performativa, ou mesmo pelas diferenças técnicas que caracterizaram cada uma das 4 salas, pelas quais os concertos foram distribuídos. Sendo assim, determinámos 4 palavras-chave que permitam entender o que foi que se passou nos dias 4 e 5 de Novembro, em Guimarães.

Intimista

Ambos os dias começaram com concertos no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG). Uma sala pequena, pelo menos em comparação com as que viriam, e pouco iluminada, escolhida a dedo para receber artistas como Sofie Birch, Luís Fernades e FAUZIA. Em todas as performances, a audiência era convidada a entrar na caixa negra e a distribuirem-se da forma mais confortável que queriam e podiam. Alguns sentados, outros deitados, rapidamente se formava um labirinto de membros para os poucos que decidiam assistir de pé. Como já mencionámos, a pouca iluminação era direcionada para o artista e, apesar de escassa, permitia compreender a intenção da performance. Unificar plateia e artista como um elemento só. A luz branca em Sofie Birch expandia a doçura levitante das bio-sonoridades entoadas, estabelecendo um simbiose necessária para que a música fizesse sentido. A luz azul, em Luís Fernandes, cultivava uma compreensão mútua de convite a participar na viagem sónica que o artista tinha preparado para a sua hora de concerto. Adicionalmente, o vermelho sépia que cobria o palco de FAUZIA assemelhava-se à coloração de lume que enchia a sala com o calor de uma nostalgia desconhecida.

Sabendo o que veríamos acontecer nas restantes 3 salas, este espaço de conforto e reflexão tornou-se vital para a apreciação do festival como um todo.

Livre

A segunda sala de espetáculos encontrava-se a cerca de 500 metros do CIAJG. A pequena viagem feita para o Teatro S. Jordão ditaria a abertura que caracterizava as próximas salas. Pouco mais que uma grande garagem, os concertos foram todos feitos nas traseiras do teatro. Lá viam-se as primeiras bancas de serviço e, em frente, um espaço de convívio e livre passagem entre a sala de espetáculos e os camarins dos artistas. Adjacentes ao centro da festa, existiam mais sítios que permitiam descansar da intensidade da maioria dos concertos que aconteceram nesse horário. Fossem em mesas de picnic proporcionadas pela equipa do festival ou apenas espaços recônditos escondidos pela arquitetura monumental do teatro.

Lá dentro, a versatilidade era o tema. Tanto permitiam performances como a de Slauson Malone 1, caótica, imersiva, tal ansiedade adaptativa que nos permite ascender a algo mais, como a de George Riley e Ill Considered, ao disponibilizarem um espaço de dança e conexão com as personalidades destacadas dos artistas. A porta estava sempre aberta, o fluxo de pessoas era contínuo, a música contagiante. Era assim que a adoção de uma postura semelhante a de um arraial levava à exploração da sala e arredores por parte dos aficionados do Mucho Flow.

Grandioso

A terceira sala, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), foi, de longe, a mais colossal de todas. Acessível apenas por uma longa rampa, este movimento de ascensão não prepararia nenhum mero mortal para as gloriosas atuações que vimos. Com tetos inacabáveis, o espetáculo de luzes de concertos como os de Slikback, Jockstrap e Blackhaine, propagavam-se na distância, acima do fumo das máquinas, e, no meio do jogo de texturas e flashes, quase que parecia ver-se o negro céu noturno de Guimarães. Em palco, as silhuetas dos artistas formavam o núcleo do aparato sónico disparado das monstruosas colunas. Eram as silhuetas que revelavam as direções dos concertos, todas elas incrivelmente intensas, de maneiras diferentes. Se em Jockstrap foi a técnica de luz epilética e o denso baixo das colunas, em contraste com os vocais angelicais de Georgia Ellery e os sintetizadores harmoniosos arpegiados por Taylor Skye, em Blackhaine foi o noise de betão e as agressivas danças contorcidas no meio da plateia que inquietaram, positiva ou negativamente, todos os que tiveram a chance de presenciar os concertos no CCVF.

A sala e a escolha dos artistas que por lá passaram, programados ou não, acabaram por oferecer o equilíbrio à continuidade de concertos ao longo das 4 salas. Primeiro, a quietude do CIAJG. De seguida, a festa animada do Teatro de S. Jordão e, na terceira sala, o efeito de catárse mais drenante e gratificante possível. Toda essa catárse seria dançada à exaustão na próxima sala de concertos.

Frenético

A sala final nos dois dias do Mucho Flow foi o Teatro S. Mamede. Inicialmente, um cinema, posteriormente um teatro. À noite, um club de dança. O primeiro espaço, depois de entrar, era um hall de entrada em formato lunar, dividido por pilares forrados em espuma cinzenta, no fundo do qual se encontrava o bar, diretamente oposto à sala dos camarins dos dj’s. Havia duas grandes entradas para a sala de espetáculos. A principal dividia-se em dois corredores, um para a direita e outro para a esquerda, delineados por um muro que tapava o púlpito com o hardware dos performers. Correndo o olhar pelos arredores do palco, imediatamente via-se o teto ascendente que perfilava a bancada suspensa atrás da multidão. Mais uma sala que permitia a indulgência no espetáculo de cores que se perdiam na distância do teatro. Sabendo isto, todos sets da noite foram cinemáticos de uma forma ou de outra. Destaca-se, principalmente, a performance de Aya. Adotando uma postura frenética e robótica, a artista de Londres beneficou do espetáculo de luzes, que a iluminavam parcialmente e demonstravam uma figura quase sobrenatural. Desde a forma como falava connosco, rápida e assertiva, aos passos de dança tão desconstruídos como a música club que a caracteriza.

 

4/11

Sofie Birch

O concerto de Sofie Birch inaugurou a mais recente edição do Mucho Flow.

A artista de Copenhaga apresentou uma amálgama dos dois mais recentes trabalhos de sua autoria: “Languoria”, lançado um mês antes do festival, e “Holotropica”, lançado em Maio de 2022. Esta hora de música permite compreender os diferentes projetos. No entanto, o teor aleatório de improvisação revela as camadas na génese dos mesmos, oferecendo perspetivas diferentes do que se pode retirar de uma artista como Sofie Birch. Tudo o que ouvimos neste concerto pode ser revisitado nos últimos dois projetos da artista, mas diverge o suficiente para perpetuar esta frescura líquida sinónima das sonoridas de Sofie Birch. Foi uma performance visualmente reconfortante que criou espaço para apaziguar a ansiedade inerente à abertura de um festival.

Slauson Malone 1

O concerto de Slauson Malone 1 passou pela apresentação do mais recente projeto Crater Speak, lançado a 6 de Abril de 2022. Desta vez, Jasper Marsalis vem acompanhado com o violoncelista Nicky Wetherell e, ao longo de uma hora, exploram um som transitório, ora explosivo com rugidos eletrónicos, ora gentil como as clássicas progressões do gospel de Motown, enriquecido pela personalidade impessoal de Marsalis e as acrobacias performativas de Wetherell.

Foi o primeiro concerto do Mucho Flow que demonstrou a faceta corrosiva e intensa do melhor que a música eletrónica experimental tem para oferecer.

 

Slikback

Slikback, o dj e produtor de Hard Bass experimental, estreou-se em Guimarães, num set que anunciou a estrondosa chegada do queniano. Desde o primeiro som acídico, ouvido no CCVF, que a performance prometeu puxar os limites do inconvencional. Nunca o techno foi pintado de maneira tão distorcida. Dançar não era um reação natural às batidas de Slikback mas sim uma forma de auto-defesa, embebida nas cadências africanas destacadas ao longo do set, e de exploração de uma cultura em exposição.

Somente a dançar era possível compreender a fusão de noise, bass music e techno tão grotescamente emoldurados pela produção genial do artista.

Sem dúvida, um dos melhores acontecimentos deste Mucho Flow 2022.

 

Kai Whiston

Kai Whiston, artista que atuou em 2019 no palco RUC, regressou a Portugal, desta vez para preencher a hora entre Slikback e Poly Chain, no CCVF. Whiston, imprevisível como é habitual, não utilizou o palco. Mascarado, saltou para o meio da multidão e deixou bem claro que pretendia camuflar-se no meio de nós. Tudo isso enquanto apresentava o seu mais recente projeto “Quiet as Kept, F.O.G.” e revisitava alguns clássicos do seu vasto catálogo, acompanhado pelos visuais projetados na parede principal do palco. Apesar de alguns problemas técnicos – os únicos realmente notórios no festival inteiro – Whiston certificou-se de que toda a gente entrava na mesma onda de frequência que ele. Quem planeava vê-lo de perto teve o desejado mas apenas durante um pequeno período de tempo, visto que, a meio do concerto, Kai Whiston perdeu-se de vista no meio dos corpos dançantes do CCVF.

 

5/11

Rainy Miller

Rainy Miller estreou o palco do Teatro Jordão no segundo dia do Mucho Flow, trazendo aos festivaleiros um enorme contraste de sonoridade após o concerto de Fauzia. Depois de entrevistar-mos o artista, assistimos a uma atuação repleta de experimentalidade sonora e uma performance intensa. Acompanhando as melodias e os beats com uma voz britânica temperada com autotune pesado, Rainy Miller deu um dos concertos mais impactantes desta edição do Mucho Flow. Toda a performance foi curiosa: o artista entrou no meio da plateia, enquanto gritava com raiva com os espectadores, já no palco rastejou em sofrimento e agarrou-se às grades que o separavam do público. Na verdade, é difícil descrever em detalhe toda a sua performance, pois no meio da confusão, procurar o artista era sempre uma missão.

 

Ill Considered

Durante a entrevista que fizemos com os Ill Considered, conseguimos perceber como funcionava a dinâmica do grupo em performances ao vivo: um concerto todo improvisado, raramente com pausas, pleno de melodias e batidas que acompanhavam a reação do público. Se o público estivesse calmo, mantinham as suas músicas mais suaves, mas quanto mais o público puxava pelo grupo, mais estes retribuiam com sonoridades energéticas e animadas. Tal dito, tal feito, o concerto dos Ill Considered foi o mais convencional do festival, mas um dos mais estimulante deles todos. O público dançou, suou e aplaudiu loucamente a performance dos artistas. Ill Considered apresentaram-se como um trio que contou com Idris Rahman no saxofone, Emre Ramazanoglu na bateria e Liran Donin no baixo, num palco perfeito para eles, em contacto bastante próximo com o público. Desta maneira, a plateia sentia o arrasamento total que Emre Ramazanoglu aplicava na bateria, juntamente com as belas e efervescentes melodias que saiam do saxofone sem fôlego de Idris Rahman, que eram complementadas pelas notas pesadas que Liran Donin soltava no seu baixo. Deram tudo ao público num concerto genial, repleto de solos arrepiantes de todos os membros da banda.

Jockstrap

Para estrear o fantástico palco do CCVF marcou presença a dinâmica dupla britânica, Jockstrap, constituída por Taylor Skye e Georgia Ellery. Poucos meses após a dupla lançar o seu primeiro albúm, “I Love You Jennifer B”, trouxeram ao Mucho Flow uma performance perfeita deste mesmo albúm, sendo que só apenas uma ou duas músicas não faziam parte do mesmo. Uma experiência semelhante a um musical ou mesmo a um filme de princesas da Disney, que mais tarde progrediu para um deconstructed club surreal, desde o agressivo ao dançável. Sendo assim, foi uma atuação completa e única. A bela voz de Georgia Ellery complementada pela genialidade de produção musical de Taylor Skye, usaram e abusaram das características do palco CCVF. Desde as luzes ao destrutivo bass que contrastava e pregava sustos aos não tão familiares ouvintes desta dupla. É, com certeza, um daqueles concertos que demarcam a qualidade da curadoria do festival.

Blackhaine

Ainda boqueabertos e a recuperar da “50/50” (faixa final da atuação de Jockstrap), o público é supreendido por um misterioso DJ, que em poucos momentos, fez as colunas servirem como presságio, com um som mais que pesado, da vinda do artista britânico, Blackhaine.

Um artista que prometia uma performance inigualavelmente impactancte que, mesmo assim, não falhou em surpreender. Ao vivo, Blackhaine não tem nada a ver com o que nos oferece nas plataformas digitais. A sua agressividade é surreal: desde a performance, aos beats extremamente pesados até à sua voz intimidante que cria o silêncio. Poucos momentos depois do artista ter entrado em palco, já fazia marcar a sua presença, pontapeando o pedestal do microfone e atirando o seu boné para a plateia. Desceu para o público e tivemos a oportunidade de estar frente a frente com Blackhaine, que afastava as pessoas à sua volta enquanto as encarava ameaçadoramente. Cuspiu no chão, gritou, ajoelhou-se e contorseu-se numa performance completamente diferente do que já tinhamos experienciado até à data no festival. Foi impossível não ficar estupefacto com o que presenciámos ao vivo. Sem sombra de dúvida, o mais intenso desta edição do Mucho Flow. Em palco com Blackhaine, Rainy Miller voltou a ter presença, apresentando algumas faixas em colaboração. Todo o concerto pareceu um delírio febril, alimentado-se mais do choque da audiência do que do entusiasmo.

 

É inegável que este festival foi das maiores surpresas a nível de cartaz e atuações deste ano. Digamos, um dos melhores festivais feitos em Portugal este ano em relação a performances. Teve todas as condições perfeitas e uma organização invejável, tendo em conta a discrepância orçamental comparativamente a outros festivais nacionais. Não houve um único artista que não valesse a pena assistir, todos eles com performances e estilos musicais diversos. A localização foi outro fator de grande valor, pois, em contraste com a comum escolha de grandes cidades, tomar esta iniciativa em Guimarães foi claramente uma grande ajuda para a descentralização. Guimarães teve todas as condições perfeitas para a realização deste festival, distribuindo uma variedade de palcos, todos eles com características únicas, que se moldaram perfeitamente aos artistas que neles atuaram. A única falha foi a falta de variedade gastronómica na Praça da Alimentação, com preços excessivos não acessíveis a qualquer pessoa. Isto criou um problema. Devido aos horários apertados entre espetáculos, a maioria das pessoas viram-se forçadas a abdicar de, pelo menos, um concerto, para se poderem alimentar. Portanto, apesar desta pequena inconveniência, que pode facilmente ser melhorada em próximas edições, não deixou de ser um festival imperdível que recomendamos vivamente.

Vemo-nos para o ano!

 

 

 

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