[object Object]

Um dilúvio sonoro nos últimos dois dias de Semibreve

Os dois últimos dia do festival Semibreve foram marcados pela chuva intensa e pelos concertos marcantes desta 13ª edição – não esquecendo os sítios emblemáticos que acolheram as performances.

O dilúvio não nos impediu de subir aos céus – terceiro dia

Se há coisa que o Semibreve é mestre, é mostrar aos forasteiros as belas salas que compõem a cidade de Braga. Os concertos do terceiro dia de festival arrancaram com Anja Lauvdal na Capela Imaculada do Seminário Menor, um espaço sacro que une o clássico e o contemporâneo – Capela construída na década de 1940 e que sofreu uma remodelação arquitetónica em 2015. O sítio ideal para receber a artista norueguesa, com o seu piano e teclados. Após um início calmo, com as melodias a ecoarem pela sala, Anja vai criando cada vez mais camadas sonoras, a partir da sua exploração eletrónica. Os loops a surgirem de forma gradual, conferiram a complexidade ideal aos temas etéreos da artista. A banda sonora ideal para uma tarde chuvosa, que teimava em não parar.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Regresso ao abrigo do Theatro Circo para mais uma noite de concertos, desta vez com a dupla Tujiko Noriko + Joji Koyama a subir a palco. Mas não sem começar logo a surpreender o público, quando um pequeno músico se juntou a Tujiko e Joji, para ajudar com o baixo e teclas. A atenção ao detalhe neste filme-concerto foi gritante. As imagens de pormenores de coisas mundanas, como ramos de árvores  ou poças de água que refletiam movimentos de crianças. Mas também filmagens abstratas, que causavam a sensação de estarmos a olhar através de um microscópio. A voz de Tujiko surgiu timidamente, transparecendo uma fragilidade da artista – as pausas recorrentes entre temas ajudavam a assentar esta ideia. Entre sussurros e trocas de instrumentos, a voz de Tujiko foi ganhando peso em palco, coordenada de forma ideal com as imagens comandadas por Joji. Imagens belas mas desconfortáveis em certos momentos – quando o ecrã emanava uma luz branca pura, e nos embrenhava ainda mais no que estávamos a presenciar. Uma electrónica abstracta que, com o auxílio das melodias certas, criaram uma atmosfera íntima nesta sala.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Os norte-americanos Emeralds ficaram encarregues de fechar o Theatro Circo nesta terceira noite de Semibreve. Um presente para a legião de fãs deste trio, que se reuniu para um dos poucos concertos deste ano de 2023. Continuamos a ter a nossa atenção atraída para imagens detalhadas, desta vez a cores e de elementos naturais – como flores e gotas de água. Começando com uma estrutura musical bem definida, sempre pela trilha da música ambient eletrónica, a confusão de camadas e texturas sonoras foi aumentando. A guitarra de Mark McGuire acompanhou, de forma ideal, a eletrónica de John Elliot e Steve Hauschildt. Os temas apresentados pelo trio navegavam entre o lado mais sonhador e o noisy. O tempo parecia estar suspenso, resultado da mestria do manuseamento dos sintetizadores, teclas e guitarra. Não podemos terminar este ponto sobre o concerto dos Emeralds sem falar, outra vez, das imagens que acompanharam este concerto. A simplicidade destas filmagens – que aparentavam ter sido gravadas com uma super 8mm, o que dava aquele aspecto vintage às filmagens – contrabalançava com a crescente intensidade da músicas, que crescia de forma efervescente. A fasquia estava elevada para os concertos que se seguiram no gnration.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Seguimos até ao GNRation para a última noite de programação neste espaço. Passava pouco das 00h15 quando a britânica Loraine James entrou no palco da Blackbox. Sem demoras, do sistema de som começa a irromper uma composição harmónica, entre a qual se distinguia uma voz aguda que dizia “feels like fire”. E, de repente, o loop hipnagógico de “2003” começa a encher a sala, que a artista acompanhou com a sua doce voz. Posto este momento mais etéreo, embarcamos numa viagem alucinante pela discografia já longa – cinco álbuns e vários singles e EPs – de Loraine. Mais focado, claro, no último e brilhante Gentle Confrontation, o confronto entre a artista e o público foi tudo menos gentil – no melhor sentido possível. Ao longo da hora de música com que nos agraciou, ouviram-se breaks em desvario, percussões que desafiam qualquer tentativa de identificação de paralelos sonoros, subs eletrizantes, sobrepostos com melodias e samples que nos levam para uma ideia de música que não é de agora nem do passado. Nada disto é novidade para quem acompanha o seu trabalho de estúdio. O que nos deixa surpreendidos e desarmados é que, ao vivo, Loraine não se encosta à sombra da criatividade já constatada nos seus discos, mas procura deixar-nos sem chão a torto e a direito, manipulando e esculpido cada decibel que brota das colunas. Este redesenho das músicas no momento torna-se ainda mais impressionante quando nos apercebemos que, além destes remixes on the fly, está, muitas vezes, a tocar os elementos melódicos que escutamos, além de também estar a mixar faixa atrás de faixa, como se já não bastasse tudo o resto. Mas não é a demonstração de prodígio técnico que nos deixa siderados e completamente agarrados ao dancefloor: é o sentimento por trás de cada batida, a sensação de que a artista se está a divertir e a dançar connosco, como se estivesse ali, ao nosso lado. Sem quaisquer paragens, Loraine fez da sua discografia tanto DJ set quanto performance, e escreveu-nos em ondas sonoras um verdadeiro manifesto à música bass que está para vir. Destaque ainda para o show de luzes, que ajudou a pintar o cenário deste concerto genial. Se foi o melhor concerto do festival? Terão de esperar pelo programa de retrospetiva para descobrir.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Tocar depois de uma atuação destas nunca seria tarefa fácil, mas Melika Ngombe Kolongo – nome civil de Nkisi – mostrou-se mais do que pronta para abraçar o desafio. Antes ainda da atuação começar, a produtora congolesa sediada em Londres, ativista e co-fundadora da editora NON Worldwide, entrou em palco para acender um pau santo, que, juntamente com a névoa das máquinas de fumo, cobriu a Blackbox do GNRation numa aura mística. Seguiu-se uma performance ritualística e catártica, em que os kicks dilacerantes se juntavam a ritmos que canalizavam memórias da música que rodeou o seu crescimento musical no Congo e stabs dissonantes e elétricos. Entre um techno industrial, futurismo pan-africano e noise percurssivo, o seu canto sobrepunha-se ao pano de fundo instrumental, impondo-se como fio condutor nesta performance enigmática, sombria, agressiva e que não teve piedade do sistema de som do espaço, abrindo feridas que o set de DJ Lynce acabaria por rasgar completamente. O portuense entrou em palco, já o relógio marcava 1h35 na nova hora e apresentou-nos um set em vinil, que viajou pelo electro, techno, drum & bass, drumfunk, darkside e jungle. Infelizmente, os problemas de som tornaram-se cada vez mais impossíveis de ignorar e quando a atuação de Pedro Santos chegou ao fim, a faixa de breakcore que encerrou a noite quase parecia um b-side obscuro de death metal experimental.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Problemas destes não são previsíveis e, embora seja uma pena que tenham acabado por marcar esta última parte da última noite do Semibreve, não custam tanto a engolir como os problemas com a gestão de públicos que marcaram praticamente toda a segunda noite de programação no GNRation. É difícil perceber e justificar como um festival com tanta experiência possa barrar entrada no concerto de um dos cabeças de cartaz (i.e. Loraine James) a inúmeros portadores de bilhete geral e diário comprado com antecedência, criando filas de mais de uma hora de espera, quando, ao mesmo tempo, estavam a ser vendidas entradas para o espaço como se de uma noite de clubbing numa discoteca se tratasse. A organização retratou-se no dia seguinte, pedindo desculpas nas redes sociais a quem passou por essa situação. O Semibreve é um excelente festival na curadoria e propostas que apresenta, sendo, por isso mesmo, altamente estimado pela comunidade melómana e, portanto, é da vontade de todos que situações destas não se repitam no futuro, pelo que esperamos que a experiência deste ano leve a melhorias nas próximas edições do festival.

Apesar da noite ter terminado num tom desanimador, a chuva e o nascer do novo dia lavaram-nos corpo e mente, deixando-nos prontos para as últimas atuações da edição deste ano do Semibreve

A tempestade sonora do quarto dia

Os sítios emblemáticos de Braga ainda não se tinham esgotado e, no último dia do festival, o concerto de Thomas Ankersmit levou-nos até ao Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho. No centro do salão, o sintetizador modular utilizado pelo artista, rapidamente despertou a atenção de cada um de nós. Um objeto enigmático que estava ali, prestes a mostrar o seu potencial – quase que um indício de como seria o concerto. Mas rapidamente Thomas acalmou a curiosidade de cada um, e apresentou o seu instrumento de trabalho, o Serge Modular Synthesizer – um sintetizador analógico com mais de cinquenta anos, e que estava pronto para ser manuseado por Ankersmit, com uma perícia inigualável. As composições sinistras tomaram conta do espaço, e sentíamos cada batida no corpo, como se fosse o pulsar do nosso sangue. O fundo da sala era composto por pessoas deitadas, a sentir as vibrações e batidas criadas pelo artista, uma submersão completa na performance – ajudada, também, pela ausência de luz artificial que se fazia notar. Era tudo levado ao extremo por Ankersmit, chegando alguns sons a serem desconfortáveis. Se o material deixasse, Thomas tinha ido ainda mais longe. Existia uma noção bem definida do espaço que o rodeava, que acolheu os seus temas dark da melhor forma possível. Na plateia, era possível imaginar as partículas a cirandar pelo espaço, enquanto o som vagueava pelo salão de forma controlada.

A tempestade que se faz sentir em Braga durante quatro dias de Semibreve, ganhou forma sonora neste concerto.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Em Braga, todos os caminhos vão dar ao Theatro Circo e, por isso, termina mais uma edição do festival na emblemática sala minhota. Apresentado no contexto do programa Re-Imagine Europe | New Perspectives for Action, Kassel Jaeger – nom de plume de François J. Bonnet, que no ano passado trouxe ao Semibreve o seu projeto com Stephen O’Malley – agraciou-nos com o seu mais recente registo fonográfico, aqui estreado em versão expandida e audiovisual. Nesta performance, muito apropriadamente intitulada Shifted in Dreams – Redreamed, a sua música meditativa, onde o orgânico dos field recordings se encontra com a modularidade de uma música eletrónica expansiva, recebeu uma interpretação fílmica por Eléonore Huisse. O casamento não podia ter sido mais perfeito. O substrato vivo presente na música do produtor francês, altamente inspirada na escola da musique concrete, providenciava uma tradução acústica muito vívida das imagens belíssimas – e, por vezes, quase brutais na sua austeridade – que a tela do Theatro Circo nos mostrava, com longuíssimos planos da natureza apenas a existir, em todo o seu esplendor, ora calma, ora de uma força impossível, a nos puxarem para dentro do grande ecrã como se somente existíssemos nós e a orquestra do mundo ao nosso redor. Uma hora de transe onírico, que deixou a plateia rendida.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

Contudo, tínhamos ainda pela frente um concerto – e que concerto. Kali Malone dispensa quaisquer apresentações. Sendo maioritariamente conhecida pelo seu trabalho com o órgão de tubos, não é só no órgão que preenche a sua pulsão artística. Para este final de tarde, fomos brindados com uma performance que, ao longo de quatro peças – ou quatro movimentos de uma só peça, mais nos pareceu – deixou tudo e todos agarrados às suas cadeiras. As semelhanças com o seu mais recente trabalho – Does Spring Hide Its Joy, uma colaboração com a violoncelista Lucy Railton e o guitarrista Stephen O’Malley – estavam definitivamente lá, desde as longas e pesadas notas, às progressões obscuras e cinzentas. No entanto, foi tudo foi muito mais sujo do que aquilo que encontramos nesse disco. Kali, como uma sacerdotisa do oculto, conjurou o negrume para nos expurgar a alma, participando ela própria neste ritual purificador: não foram poucas as vezes que, como nós, ficou absolutamente parada de olhos fechados, a respirar as ondas de camadas de som que batiam umas nas outras numa orquestra hipnótica, que nos arrastava com ela num vórtex incessante de decibéis. Sobram poucas palavras para descrever e comentar com alguma sobriedade as composições distorcidas, profundas e fúnebres, mas cheias de vida, que marcaram esta performance absolutamente alucinante, destrutiva e reparadora. O drone encontrou o doom e o que daí resultou foi pura catarse ritualística. Fomos, ouvimos, vimos, e voltámos – mas definitivamente já não éramos os mesmos. Passam-se três dias, à data da escrita deste texto, desde então e ainda não conseguimos processar ou descortinar bem todas as formas como esta experiência nos moveu. Uma coisa é certa: Kali Malone continua a ser das artistas mais arrojadas e imperdíveis no panorama cultural contemporâneo.

Adriano Ferreira Borges / Semibreve 2023

E assim terminou mais um Semibreve, que contou ainda com vária programação paralela, com conversas, workshops e exposições. Para já, enquanto aguardamos novidades sobre a próxima edição do festival, temos ainda preparado um programa de retrospetiva do festival, onde iremos conversar sobre os destaques deste ano. Sintonizem-se no Vektor de terça-feira, dia 7/11, pouco depois das 18h, para ouvirem tudo.

PARTILHAR: