A RUC EM BUSCA DO VALE PERDIDO
A estreia do evento lisboeta aconteceu entre 15 e 19 de novembro. Um cartaz eclético e imprevisível com espaços familiares e outros por descobrir. A RUC foi em busca do Vale Perdido.
A partir da vontade de três programadores culturais unidos pelo desejo de trazer algo novo à capital surge o Vale Perdido: cinco dias de música inconformada que passaram a quatro, após um cancelamento de última hora.
A Igreja Anglicana de São Jorge, o 8 Marvila e a Sala Lisa foram os espaços que acolheram este novo projeto. Numa cidade saturada pela especulação, onde mais frequentemente se fecham portas a iniciativas culturais do que se abrem, é revigorante o recente aparecimento de locais como a Sala Lisa, espaço intimista dedicado à música livre que, desde maio, já recebeu nomes como OKO DJ, KMRU, Lolina, DJ Sotofett, entre muitos outros.
Na primeira noite de Vale Perdido, deslocámo-nos até à zona do Jardim da Estrela, mais concretamente ao Cemitério dos Ingleses. Sendo a nossa primeira vez na Igreja de São Jorge percorremos, curiosos, o caminho sombrio por entre campas até à entrada do espaço que no passado já recebeu gigantes como Kali Malone e William Basinski.
A abertura esteve a cargo de Polido, artista natural da Marinha Grande e nome habitual dos espaços lisboetas focados na exploração musical. Conhecíamos o desejo da organização de dar a oportunidade a uma figura local de brilhar na inauguração. Joaquim Quadros, um dos responsáveis por este Vale Perdido, confessara-nos a confiança depositada em Polido para nos apresentar um pouco do seu álbum ainda por sair, “Successive Elegies”. O artista, quase que camuflado por detrás de um manto de fumo e luzes azuis, começou o concerto com sons tilintantes que depressa deram lugar a uma amostra mais completa do que é capaz.
O segundo e último concerto desta primeira noite foi de FUJI||||||||||TA. O artista japonês em estreia nacional apresenta-se em palco com uma panóplia de instrumentos construídos pelo próprio, o que nos fez procurar, durante o intervalo, um lugar mais próximo do púlpito que nos permitisse ver melhor. Melodias hipnotizantes em loop e cânticos ancestrais distorcidos rapidamente confirmaram as nossas suspeitas: o carácter sagrado de São Jorge estava em plena sintonia com o prazer ritualesco de presenciar este concerto.
A noite de quinta-feira foi cancelada, depois de Joanna Steinberg não poder comparecer no B.Leza, por razões de saúde. A organização do festival anunciou, no entanto, que o concerto de Maria Reis passaria para a noite de domingo, na Sala Lisa.
Na sexta-feira, dia 17 de novembro, andámos um pouco mais por este Vale até aos 22 mil metros quadrados do 8 Marvila, outrora um armazém de vinho. Esperava-nos uma noite mais ritmada que, após a bênção de quarta-feira, seria a altura certa para exorcizar a alma.
Patrícia Brito, também conhecida pela sua arte têxtil sob o alter ego de “t.i.l.o”, inaugurou a booth com um set hipnótico e tribal e aqueceu o terreno para o resto da noite, à medida que o público se ia espalhando pelo vasto recinto.
Um dos concertos mais esperados viria a seguir: Nihiloxica, um supergrupo que engloba membros do Nilotika Cultural Ensemble do Uganda e os britânicos spooky-j e pq. O conjunto traz para o palco a fusão dos ritmos do Buganda e sonoridades mais electrónicas e rave, que estão também presentes no seu fresco álbum “Source of Denial”. E foi mesmo isso que ofereceram, uma intensa “batucada” exorcizante que levou todo o público ao êxtase ao longo de uma hora. Ainda houve espaço para uma bela edição sonora para não deixar cair em esquecimento o que está a acontecer ao povo que “do rio ao mar, será livre”.
Podemos dizer à vontade que foi um grande “move” neste alinhamento apresentar de seguida as Batucadeiras de Olaias, um projeto comunitário nascido em 2019, e que desde então tem sido uma presença recorrente em eventos por toda a cidade de Lisboa. A noite continuava ritmada, agora com o batuku cabo-verdiano que marcou a noite com um momento mágico e comovente, com o grupo a tocar no meio do público, que se foi juntando às Batucadeiras, formando uma espécie de “poço de dança” que prevaleceu durante toda a performance. Se esta noite tivesse terminado por aqui, ninguém ficaria incomodado, depois desta dose dupla de provas de que há espaço para diversidade e exploração em vários e inusitados contextos, sem qualquer tipo de preconceito.
Mas a noite continuou, e seria o trabalho de Kleo, da editora Rush Hour, terminar esta noite. A DJ fez ecoar os fantasmas das warehouse raves dos anos 80/90, isto devido ao seu contagiante set de new beat, acid e house e também claro, ao facto de o próprio 8 Marvila ser um enorme armazém.
Poucas horas de sono e mais uma viagem até Marvila depois, tinha chegado a noite de clubbing mais ansiada do Vale Perdido. Esta “noite” tinha já começado durante a tarde, com o set mais longo do festival: seis horas de discos por Ricardo Grussl & Tadas Quazar.
Para nós, a jornada começou mais tarde, já depois de DJ Caring ter assumido os comandos do 8 Marvila. Nome sonante nas festas de Lisboa, foi para nós uma agradável estreia. Do techno ao house, do electro ao post-punk, DJ Caring explorou diferentes géneros de música eletrónica de uma forma coesa, proporcionando um aquecimento subtil para o que se seguiria.
Luke Vibert levou-nos numa verdadeira viagem pelos meandros da música eletrónica. O início do set foi gradual e pautado por alguns dos clássicos que marcaram a sua carreira, como por exemplo “I Love Acid”. Sonoridades old school de breakbeat ou new beat inundaram as colunas e paredes do armazém, mas foi o final do set que se revelou imprevisivelmente apoteótico: bpms elevados e kicks distorcidos davam lugar a ritmos de electro vindos de outro planeta (ou de Detroit) e vice-versa.
Violet tomou as rédeas e ficou encarregue de fechar a noite. Apesar de ser presença habitual em quase todas as booths lisboetas e nacionais, a DJ conseguiu surpreender todos os que ficaram embalados pelo set anterior, apresentando-se com faixas de acid e de elevados bpms. Não ficámos até ao fim, mas o parecer geral foi unânime: o fecho da noite tinha sido memorável.
E assim tínhamos percorrido quase todo o Vale, que faltava completar com a última sala por explorar, a Lisa. A mais pequena de todo o evento, mas de certa forma, a mais acolhedora e a mais gratificante para um final de domingo.
Como foi referido anteriormente, esta noite foi prolongada com mais uma artista que justamente abriu as hostes. Dispensando qualquer tipo de apresentação no circuito mais underground lisboeta (e não só), Maria Reis veio colar toda uma audiência e uma sala esgotada à vulnerabilidade das suas canções, provenientes na maioria do seu último trabalho, “Benefício da Dúvida”, de 2022. Ao fim de três álbuns, Maria Reis estará provavelmente na sua melhor fase de compositora/cantora, com a carreira cada vez mais consolidada.
Concluído o concerto, e entre a preparação do próximo, houve tempo para beber um copo e ir lá fora para um cigarro e para a casual conversa de resumo destes dias de música. Tudo de forma relaxada e sem qualquer pressa como, aliás, aconteceu durante quase todo o evento. É louvável que, numa altura em que a maioria dos festivais nos bombardeia com mil artistas e sobreposições horárias, haja equipas de produção que optem pela calma e pelo prazer de desfrutar um (ou dois) cigarros entre espetáculos.
Corriam rumores por uma das mais conhecidas redes sociais de que um dos artistas que iria atuar a seguir queria usar um carro como instrumento dentro da Sala Lisa. Quando entrámos, não havia nenhum veículo (que naturalmente não coube na entrada), mas fica a dica para algum programador de eventos que queira explorar esta ideia muito peculiar. Estamos a falar de Xavier Paes, artista multidisciplinar em ascensão no panorama nacional e Gabriel Ferrandini, percussionista assíduo na cena jazz e experimental portuguesa. Na falta de uma viatura, os artistas abriram o concerto de forma belíssima através do uso dos copos do bar, diretamente do balcão da Lisa. Após esta intro hipnótica e com a atenção total do público, dirigiram-se para o palco, fazendo alguns sons até o atingirem de forma ritualística. Munidos de uma bateria partilhada e de uma máquina de fumo, também usada como instrumento musical, foram explorando os limites dos instrumentos, intercalando entre a percussão e o drone, com a audiência atenta a cada movimento, como aliás se viria a manter até ao final. De realçar que, sensivelmente a meio do set, um strobe que se encontrava debaixo do palco começou a disparar continuamente o que, juntamente com as luzes e cortina vermelhas atrás de ambos, acrescentou à performance toda uma espécie de ambiente lynchiano, conferindo-lhe uma beleza sui generis. Findado o concerto, uma ovação aos artistas de um público mais do que satisfeito.
Mais uma moedinha, mais uma pausa que deu lugar ao encerramento deste Vale Perdido com A:DI, um londrino transformado recentemente em lisboeta. Uma sala infelizmente um pouco vazia e um set que fez todo o sentido para um calmo domingo à noite, através de sonoridades downtempo e ambient.
Rendemo-nos sem dúvida a estas quatro noites de descoberta e aguardamos pela segunda edição, pela terceira e pela quarta. Valerá a pena perdermo-nos mais uma vez pelos caminhos do Vale, com a promessa de que certamente, algo vamos encontrar pelo caminho.