Entre o Labirinto da Insolvência e a Assembleia Geral Extraordinária Rejeitada
Se em campo, a bola é redonda, fora dele, as questões são bem mais quadradas. E a Direção, bem como o Presidente da Assembleia Geral, precisam de aprender a jogar este “jogo fora das quatro linhas” com a mesma mestria que os nossos jogadores demonstram no relvado. Caso contrário, a Académica vai continuar a ser goleada fora de campo. A opinião de Tomás Cunha
Mais de uma centena de sócios da Associação Académica de Coimbra/Organismo Autónomo de Futebol (AAC/OAF) entregaram ao presidente da Assembleia-Geral do clube (PMAG), Fernando Barata Alves, um documento a solicitar a marcação de uma assembleia extraordinária para discutir a situação financeira da instituição, bem como para obter informações e esclarecimentos sobre o plano de insolvência do OAF que está a decorrer. Desta forma, os sócios também procuram entender as razões que levaram ao não cumprimento dos estatutos por parte da Direção relativamente à apresentação anual do relatório e contas do OAF e da Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ).
Por fim, os associados pretendiam analisar e debater a época desportiva 2023/2024 e suas consequências para o futebol da instituição, bem como outros assuntos relacionados com o funcionamento desta.
No entanto, este pedido foi rejeitado pelo presidente da Mesa da AG, o que rapidamente levantou críticas. Será que estas críticas têm fundamento? Vejamos:
O artigo 58.º prevê iniciativa única ao Presidente da Mesa Assembleia Geral:
Os estatutos no artigo 58.º, número quatro, estabelecem que a Assembleia Geral pode ser convocada de forma extraordinária, quer por iniciativa do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, quer por requerimento da Direção, do Conselho Fiscal, do Conselho Académico ou de um mínimo de 50 sócios efetivos em pleno gozo dos seus direitos. Ora, tal como Nietzsche tão acertadamente afirmou, o diabo reside nos detalhes. Ou, no caso em apreço, nas alterações subtis, nos “ous” aparentemente inócuos, que nestas questões de natureza jurídica, frequentemente tão áridas, por vezes, acabam por ditar o rumo dos acontecimentos.
Perante a recolha de 100 assinaturas de sócios efetivos, um número que duplica o mínimo estabelecido pelos estatutos, seria expectável que o Presidente da Assembleia Geral convocasse a Assembleia extraordinária. Ora, os textos dos estatutos não fazem referência a qualquer obrigação por parte do Presidente da AG. No entanto, é claro que a iniciativa de marcação é deste, havendo a dependência de um requerimento para a Direção, Conselho Fiscal e Conselho Académico ou da entrega de 50 assinaturas por parte dos sócios.
Artigo 58º, nº4: A Assembleia Geral reúne extraordinariamente, por iniciativa do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, a requerimento da Direcção, do Conselho Fiscal, do Conselho Académico ou de, pelo menos, 50 (cinquenta) sócios efectivos em pleno gozo dos seus direitos.
Estaria Barata Alves obrigado a marcar a Assembleia Geral?
Entramos aqui num labirinto semântico. O requerimento, por sua natureza, pressupõe a solicitação de algo, neste caso, a realização de uma Assembleia Geral. Porém, o presidente da Mesa AG, como único órgão com capacidade de iniciativa para a organização da Assembleia, tem o dever de receber e analisar o requerimento.
Naturalmente, este dever não implica necessariamente que o presidente da Mesa da AG esteja obrigado a aceitá-lo ou a conceder o pedido. Ou seja, o pedido pode ser rejeitado.
Explicação de Barata Alves carace de fundamentação
Em entrevista à Rádio Universidade de Coimbra, o primeiro subscritor do documento entregue ao presidente da Assembleia Geral, Manuel Rodrigues, revelou que recebeu uma carta registada do presidente da Mesa da AG da AAC/OAF. Nessa carta, o presidente negava a realização da Assembleia Geral, apoiando-se no artigo 63.º, n.º 1 dos Estatutos, que delimita as prerrogativas do órgão presidido por Barata Alves. Também em entrevista à RUC, o presidente da Mesa da AG esclareceu que a razão para a não convocação da AG foi “a ordem de trabalhos que se propunha” e mencionou que “foi o texto dos estatutos que serviu de base” para a decisão, referindo-se ao artigo 63.º, n.º 1 dos Estatutos.
Barata Alves podia rejeitar o pedido?
Podia Barata Alves rejeitar o pedido de convocação de Assembleia Geral? Sim, podia, mas estava obrigado a fundamentar adequadamente a sua recusa. Os critérios para tal recusa não são explicitamente indicados nem no Código das Sociedades Comerciais nem pelos Estatutos. Perante a omissão legal e estatutária, recorro as palavras do Professor Coutinho de Abreu, que defende que o presidente da Mesa Assembleia Geral só deve recusar pedidos de convocação de assembleia geral “quando os assuntos propostos não sejam apropriados para deliberação pelos sócios ou quando o pedido se apresente inoportuno ou notoriamente abusivo“, nomeadamente em circunstâncias que contrariem os deveres fundamentais de lealdade na condução da vida da sociedade comercial.
Tendo em conta esta perspetiva, a recusa do presidente da Mesa da Assembleia Geral afigura-se como insuficiente e carente de transparência na minha opinião. Neste sentido, exigia-se uma fundamentação mais sólida do que a mera alusão a um preceito tão genérico quanto o Artigo 64.º para justificar a não convocação da Assembleia Geral.
E agora? É possível recorrer desta decisão?
Nos casos, como este, onde o presidente da Mesa da Assembleia Geral indefere o requerimento, o requente pode pedir convocação judicial da Assembleia nos termos do Código de Processo Civil.
Há sanções previstas para o presidente da Mesa da Assembleia Geral?
Sim, de facto existem sanções legalmente estipuladas para o presidente da Mesa da Assembleia Geral em caso de incumprimento das suas obrigações. Segundo a legislação em vigor, se o incumprimento for intencional (com dolo), o presidente pode ser responsabilizado criminalmente, conforme estabelece o Código das Sociedades Comerciais. Mesmo que o incumprimento não seja intencional, o não cumprimento do dever de convocar a assembleia pode levar a outras penalizações, tais como a destituição por justa causa e a responsabilidade civil.
O Poder das Cinquenta Assinaturas: A Iniciativa (ou Falta Dela) do Presidente da Assembleia Geral
Independentemente das questões jurídicas, que são sempre áridas e suscetíveis de discussão, creio que Barata Alves não esteve bem.
A possibilidade de marcação de uma Assembleia Geral Extraordinária através da coleta de assinaturas não se resume a ser apenas um instrumento que fomenta a transparência dentro da sociedade comercial. Representa, sobretudo, um incentivo à participação ativa dos sócios nos destinos da sociedade, especialmente no que diz respeito a temas que requerem uma intervenção urgente, funcionando como um mecanismo de contrapeso na vida societária do clube. Esta é uma prática que deveria ser constantemente encorajada, em particular num clube como a Académica, que tantas vezes é acusada de alienar os seus adeptos e simpatizantes.
Retorno à questão: podia Barata Alves rejeitar o pedido de convocação de Assembleia Geral? Sim, podia. No entanto, Barata Alves, ao optar por rejeitar tal pedido, tinha de ter adotado uma abordagem mais rigorosa, fundamentada e transparente para com os sócios. Sem tal rigor, mergulhamos em discussões improdutivas que se debruçam sobre trivialidades, como o escrutínio de vírgulas e a análise excessiva de cartas e requerimentos.
O segredo como a alma do negócio?
Em resumo, o Presidente da Assembleia Geral não está a cumprir o seu papel como guardião dos Estatutos. Não é o primeiro a fazê-lo, basta recordar os excessos de Maló Abreu no último mandato. Mas, após tantas promessas de transparência, não seria mais adequado que a Mesa da AG e a direção se dirigissem de forma clara e aberta aos seus sócios? Esta é uma questão que permanece sem resposta. Existem razões, que circulam através de rumores, para a não convocação da Assembleia Geral num momento em que a Académica se vê confrontada com dois pedidos de insolvência distintos: um sobre a SDUQ e outro sobre o clube. Afinal de contas, nestas questões, o segredo é, muitas vezes, a “alma do negócio”, e a exposição pública sobre informação sensível sobre o clube poderá influenciar o resultado destes processos.
Contudo, os meses passam e a informação continua sem chegar aos adeptos. Há um total silêncio da direção na praça pública sobre estes assuntos, deixando a narrativa sobre a situação financeira do clube dominada pelos chamados guerreiros dos teclados nas “redes sociais”, que todos os dias criam teorias (umas mais credíveis que outras) sobre o que se passa nos gabinetes do Bolão. Por isso mesmo, não seria melhor comunicar com os sócios? Afinal de contas, nem todos os adeptos são ignorantes ou mal-intencionados (a grande maioria, naturalmente, não o é). Novamente, fica uma pergunta sem resposta, a qual a Direção e a Mesa da Assembleia devem responder.
Os estatutos – a bola quadrada?
Em campo, a bola é redonda, mas fora dele, as questões são bem mais quadradas. E a Direção, bem como o Presidente da Assembleia Geral, precisam de aprender a jogar este “jogo fora das quatro linhas” com a mesma mestria que os nossos jogadores demonstram no relvado. Caso contrário, a Académica continuará a enfrentar revezes fora das quatro linhas, sofrendo derrotas em terrenos onde a estratégia e a gestão são tão cruciais como a habilidade com a bola dentro de campo.
Tomás Cunha é jurista, formado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), e possui um LLM em Direito Europeu pela Tilburg University, nos Países Baixos. Faz parte dos Relatos RUC, tendo sido coordenador desta equipa entre 2018 e 2020. Esta crónica não reflete as posições da Rádio Universidade de Coimbra nem dos Relatos RUC, representando unicamente a opinião do autor do texto.