AUTOR: Guilherme Queiroz

DATA: 22.12.2021

DURAÇÃO: ...

Quando a 13 de janeiro de 2017 Mark Fisher se retirou desta vida, deixou inacabada a introdução daquele que seria o seu próximo livro – Acid Communism. Deixando para trás a inevitabilidade incutida pelo Realismo Capitalista, Fisher partia do psicadelismo dos anos 60 como momento histórico de promoção da capacidade coletiva de produzir, cuidar e desfrutar, e destruído ativamente pelas políticas neoliberais subsequentes. Ainda que Fisher mantenha, como habitual, um pensamento cingido ao Norte Global, não esquecemos que os anos 60 foram terreno fértil para ditaduras sanguinárias, década que praticamente começa com o assasinato de Patrice Lumumba e termina com o de Allende e de Cabral. Contudo, não deixa de ser importante como no berço do neoliberalismo se puderam, um dia, imaginar outros mundos. E como estes hoje nos podem dar pistas para contrapor a invenção à resistência, construindo cenários de futuro não só anti, mas essencialmente pós capitalistas.

Como melómano assumido, Mark Fisher povoa os seus textos com referências musicais. Acid Communism não é excepção. O programa de hoje será dedicado assim ao último texto de Fisher, testemunho também ele de um futuro por vir. Daqui em diante, farei da minha voz a de Fisher, citando alguns excertos do texto, e percorrendo todas aquelas músicas que surgem citadas, também elas corroendo ácidas as estruturas doentes da sociedade. 

Nos anos recentes, a década de 60 tornou-se um passado profundo, tão exótico e distante que nem podemos imaginar como seria lá viver, num momento mais vivido que agora – um tempo onde as pessoas realmente viviam, onde as coisas realmente aconteciam. Ainda assim a década assombra não devido a qualquer irrecuperável ou irrepetível confluência de factores, mas porque os potenciais que materializou e começou a democratizar – a perspetiva de uma vida livre da dureza do trabalho – foram continuamente suprimidos. (…) (A vitória do Neoliberalismo, claro, depende de uma cooptação do conceito de liberdade. A liberdade neoliberal, evidentemente, não é uma liberdade do trabalho, mas uma liberdade através do trabalho).

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Indo além da simples história de que os anos 60 levaram ao neoliberalismo, estas novas leituras dos anos 70 permitem-nos apreender a bravura inteligente, a energia feroz e a imaginação improvisacional da contra-revolução neoliberal. A instação do realismo capitalista não foi de todo uma simples restauração de um velho estado das coisas: o individualismo mandatório imposto pelo neoliberalismo foi uma nova forma de individualismo, um individualismo definido contra as diferentes formas de coletividade vindas do clamor dos anos 60. Este novo individualismo foi desenhado tanto para ultrapassar como para nos fazer esquecer essas formas coletivas. Assim, evocar essas múltiplas formas de coletividade é menos um acto de lembrança que de desesquecimento, um contra-exorcismo do espectro de um mundo que poderia ser livre.

Comunismo ácido é o nome que dei a esse espectro. O conceito de comunismo ácido é uma provocação e uma promessa. É uma espécie de piada, mas com um propósito bem sério. Aponta para algo que, a certo momento, parecia inevitável, mas que agora parece impossível: a convergência da consciência de classe, conscientização socalista-feminista e consciência psicadélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista, uma esteticização da vida quotidiana sem precedentes.

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“Era Julho de 66 e tinha uns 9 anos recém feitos. Estávamos de férias nos Broads e a minha família tinha adquirido recentemente um belo barco de madeira que seria a nossa casa flutuante na quinzena vindoura. (…) Olhei para cima, para o céu limpo e azul. “River Deep, Mountain High” do Ike e da Tina Turner tocava na rádio, e uma espécie de transe extasiado desceu sobre mim. Do céu azul infinito olhei para baixo, para a tumultuosa onda cristalina que o barco criava à medida que seguíamos viagem e, nesse momento, “River Deep” deu lugar à minha música preferida do momento: “Bus Stop” dos Hollies. Enquanto a imitação de guitarra de flamenco que marca o início gaguejou do interior do barco, eu olhei as águas turvas e pensei alto para mim próprio: “Isto está acontecer agora. Isto está a acontecer agora!”

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Este relato vem de Going to Sea in a Sieve, memórias do escritor e radialista Danny Baker. (…) há algo bem específico neste momento, algo que significa que só poderia ter acontecido então. Podemos enumerar alguns dos fatores que o tornaram único: uma sensação de segurança existencial e social que permitia às famílias da classe trabalhadora tirar férias; o papel que as novas tecnologias como o transistor desempenhavam ao conectar grupos a um exterior e possibilitando que desfrutassem no momento, um momento que de alguma forma era exorbitantemente suficiente; o modo como nova música genuína – música que não era imaginável alguns meses antes, quanto mais anos – podia cristalizar e intensificar toda esta cena, imbuindo-a com uma sensação de causal, mas não complacente, optimismo, uma sensação de que o mundo estava a melhorar.

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Esta sensação de suficiência exorbitante pode ser ouvida em “Sunny Afternoon” dos Kinks, que Baker pode bem ter ouvido esse mesmo dia na rádio, ou em “I’m Only Sleeping” dos Beatles, que sairia um mês depois; ou em outros lançamentos posteriores como “Lazy Sunday” dos Small Faces. Estas canções apreenderam essa labuta da ansiedade-sonho do dia a dia a partir de uma perspetiva que flutuava com ela, por cima ou por baixo: tanto se fosse a rua agitada vislumbrada de uma janela alta de um dorminhoco tardio, cuja cama se torna um gentil e ocioso barco a remos; o nevoeiro e a geada de uma segunda de manhã, renunciada a partir de uma solarenga tarde de domingo que não tem de terminar; ou as urgências dos negócios alegremente desdenhadas desde um ninho encabeçando uma sinuosa torre aristocrática, agora ocupada por sonhadores da classe trabalhadora que nunca acordarão novamente. 

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“I’m Only Sleeping” (“stay in bed, float upstream”) era gémea da faixa mais conscientemente psicadélica “Tomorrow Never Knows”. Se a letra de Tomorrow Never Knows, minimamente adaptadas de A Experiência Psicadélica: Um manual baseado no Livro Tibetano dos Mortos, pareciam algo banais, a música, o design de som, retêm o poder de transporte. John Foxx relembra que “Era diferente de tudo o que alguma vez havia ouvido, mas de algum modo instantaneamente reconhecível. Claro, as palavras era um pouco suspeitas, mas a música, o som – eletricidade orgânica, transmissões desintegradas, estações de rádio perdidas, missas católico-budistas de um universo paralelo, o que devemos sentir quando somos apedrejados – sem peso, sem tempo, revelação, movendo-se através de luminosas novas paisagens em velocidade serena. Comunicava, inovava, infiltrava, fascinada, elevava – era um mapa para o futuro.”

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Estas “luminosas novas paisagens” eram mundos além do trabalho, onde a repetitividade da enfadonha labuta dava lugar a derivas exploratórias de territórios estranhos. Ouvida hoje, estas músicas descrevem essas mesmas condições necessárias à sua produção, isto é, o acesso a um certo modo de tempo, um tempo que permite uma absorção profunda.

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A recusa do trabalho era também uma recusa a internalizar sistemas de valorização que requerem que a nossa existência seja validada por emprego pago. Isto era, assim dizendo, uma recusa à submissão a um olhar burguês que media a vida em termos de sucesso no negócio. 

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Onde a nova cultura não estava a ser dirigida por aqueles com contexto de classe operária, parecia liderada por renegados de classe como os Pink Floyd, jovens de famílias burguesas que rejeitavam os seus próprios destinos de classe e se identificavam “abaixo”, ou à parte. Queriam fazer o que quer que fosse excepto entrar em negócios e na banca: campos cuja libidinização subsequente teria espantado as mentes expandidas dos anos 60.

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Ellen Willis sentiu certamente que as formas dominantes das políticas de esquerda eram incompatíveis com os desejos e ambições despoletados e traduzidos pela música. Enquanto a música que ela ouvia falava de liberdade, o socialismo parecia ser sobre centralização e controlo estatal. (…) No Reino Unido, Stuart Hall sentiu frustrações semelhantes com muita da esquerda existente – frustrações mais intensas neste caso porque ele se via a si mesmo como socialista. Mas o socialismo que Hall queria – um socialismo que pudesse engajar com os anseios e sonhos que ouvia na música de Miles Davis – estava ainda por criar, e a sua chegada era obstruída tanto por figuras da direita como da esquerda.

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A contracultura pensava que estava já a produzir espaços onde esta revolução poderia ser já experienciada. 

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Para ter alguma noção de como esses espaços eram, nada melhor que ouvir “Psychedelic Shack” dos Temptations, lançado em Dezembro de 1969. O grupo representa o papel de ingénuos ofegantes acabados de regressar de um certo País das Maravilhas: “Strobes flashando bem além do pôr-do-sol… Não existe de todo o tempo… Inceso no ar…”

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Para toda a familiaridade destes significantes, ouvir “Psichedelic Shack” pode na verdade parar-nos subitamente. (…) [Psychedelic Shack] descreve um espaço que é muito e definitivamente coletivo, que possui a azáfama e energia do bazar. Para todas estas partidas carnavalescas da realidade do dia a dia, no entanto, esta não é uma utopia remota. Parece como um espaço social real, um que podes imaginar que exista mesmo. (…) É um espaço fraternal, tanto para conviver e conversar como para varrer a mente por completo. Se não existe “tal coisa como o tempo” – porque a luz suspende a distinção entre dia e noite; porque as drogas afetam a percepção do tempo – então já não és presa das urgências que tornam tanto do teu dia de trabalho um horror. Não há limite para quanto pode durar uma conversa, e não há como prever onde levarão os encontros. És livre para deixar a tua identidade coloquial para trás, podes transformar-te de acordo com os teus desejos, de acordo com os desejos que não sabias sequer que tinhas.

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A característica definitiva e crucial da psicadelia é a questão da consciência, e a sua relação com o que é experienciado como realidade. Se os fundamentos da nossa experiência, como o nosso sentido de tempo e espaço, podem ser alterados, não quer isso dizer que as categorias pelas quais vivemos são plásticas, mutáveis? Compreendido em termos individuais, isto leva rapidamente ao relativismo fácil e ao voluntarismo naive que os próprios Temptations almejaram no seu primeiro single psicadélico “Cloud Nine”. Claro, podes ser o que quiseres, mas apenas estando a um milhão de milhas da realidade, apenas deixando para trás todas as tuas responsabilidades.

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A televisão era um canal para o contágio (Beatlemania!), trauma e histeria tanto quanto para mensagens paternalistas ou vigarices comerciais. Ninguém tinha sido tão famoso em vida como os Beatles porque a infraestrutura para tal fama tinha acabado de ser criada, e os próprios Beatles faziam parte da sua construção, como se – de uma só vez e em simultâneo – o mundo se tivesse tornado uma extensão do seu próprio sonho eletrónico, e eles se tivessem tornado personagens dos sonhos de todos os demais. Tal é a qualidade de “A Day in the Life” do Sgt. Pepper’s, onde se toca a diferença entre o calmo sonho lúcido de Lennon e as urgências da vida de trabalho (um McCartney suburbano e ofegante que chega ao autocarro mesmo a tempo). Ainda assim a fuga às urgências é sempre dolorosamente próxima – uma vez no autocarro, McCartney cai no sonho. Lennon soa desapaixonado mas não desprendido; existe humor mas não demasiada familiaridade. A sua voz parece intimar que a sonambulância quotidiana do mundo do trabalho apenas pode ser propriamente apreendida desde a perspetiva concebida um tipo de transe diferente. Ou é, pelo contrário, uma voz que ,desconectada dos imperativos do mundo do trabalho e do acordar, se revela catatónica? As músicas mostram-nos o interior visto a partir do exterior, enquanto Lennon nos leva numa viagem através das diferentes vias pelas quais a consciência é eletronicamente mediada (por jornais, filmes, televisão): “I read the news today, oh boy”.

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Uma nova humanidade, uma nova visão, um novo pensamento, um novo amor; é esta a promessa do comunismo ácido, e era a promessa que poderias ouvir em “Psychedelic Shack” e na cultura que a inspirou. Apenas 5 anos separam “Psychedelic Shack” da clássica “My Girl”, mas quantos novos mundos surgiram entre elas? Em “My Girl”, o amor mantém-se sentimentalizado, confinado ao casal, em “Psychedelic Shack” o amor é coletivo, e orientado para o exterior.

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Com “Psychedelic Schack”, os Temptations estavam há um ano imersos no novo som que o líder não oficial do grupo, Otis Williams, tinha persuadido o produtor Norman Whitfield a desenvolver. Whitfield tinha sido inicialmente relutante a alterar o som dos Temptations mas esta eventual conversão levaria a algumas das mais espetaculares produções na história da música popular: produções que se construiríam na premissa evocada por “Tomorrow Never Knows”, mas em que os próprios Beatles eram bons. Whitfield envolveu-se de tal forma nas paisagens sonoras psicadélicas que trabalhava em estúdio que fazia com que os Temptations lançassem músicas com 8 ou 9 minutos, com espaço para extensas passagens instrumentais. Ele formou o grupo “Undisputed Truth” especificamente como laboratório para experimentar estas longas produções lisérgicas. A experimentação de estúdio de Whitfield estão par a par com o que Lee Scratch Perry estava a fazer na Jamaica com o dub. Os espaços sonoros que abriam eram também sobre uma certa experiência de tempo: um tempo distendido, um tempo que já fora desnudado, e populado com inauditas estranhas formas sonoras, que seduziam o ouvindo a uma imersão profunda no momento, mesmo quando nos envolviam em padrões e pulsações rítmicas. Este novo espaço-tempo seria mais tarde revisitado e reformado por novos exploradores como Tom Moulton, Larry Levan e Walter Gibbons: os inventores da extended dance track, que por sua vez seria a base de géneros psicadélicos como o house, o techno ou o jungle.

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O modelo para o novo som dos Temptations tinha sido os Sly and the Family Stone, com traços de James Brown e Jimi Hendrix: uma matriz febril, composta de elementos que já tinham interagido uns com os outros. A alteração no som tinha sido mais que uma mudança no estilo: também correspondia a um novo conjunto de exigências e expectativas sobre o que a música poderia ser. Não mais confinada à baladaria de canção de amor ou à claque da boa onda, a música popular podia agora ser comentário social; ainda melhor, podia alimentar-se e retroalimentar-se através das transformações sociais que dissolviam certezas prévias, prejuízos, assunções. Podia ir buscar os seus gestos à confiança, raiva e assertividade que transbordavam dos movimento dos Direitos Civis, e podia perfomar um novo conjunto de relações sociais que concediam um sabor embriagante ao que o mundo poderia parecer uma vez que o movimento tivesse sucesso. Foi isto que Greil Marcus ouviu e viu nos Sly and the Family Stone, no seu grande ensaio de 1975 intitulado “O Mito de Stargerlee”:
“O verdadeiro triunfo de Sly foi que ele conseguiu singrar em ambos lados. Cada detalhe do seu estilo, desde a pompa no vestir à originalidade da sua música, tornava claro que ele era o seu próprio homem. Se a essência da sua música era a liberdade, ninguém era mais agressivamente livre que ele. E ainda assim ainda havia lugar para toda a gente para a América feita para negros e brancos, homens e mulheres, que cantavam “different strokes for different folks” e qu estavam no palco para mostrar o que tal ideia de independência significava.”
O Sly and the Family Stone pareciam de facto dominar em todo o sentido: com um som que era algo perclitante, improvisado, e ainda sinusamente dançável; uma música que não era nem sentimental, nem beata, mas humorosa e gravemente séria ao mesmo tempo.

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O riso de Alice, a liberdade lúdica e ousadia incorporadas pelos Sly and the Family Stone: eles poderiam ter sido representados por uma guarda avançada, mas não havia necessidade para eles de serem confinados a uma elite. Pelo contrário, a questão que a presença deles na rádio e na televisão insistentemente colocava era: porque é que esta boémia não está disponível para todos?

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Em 1977, tais exigências pareciam não só realistas como inevitáveis – “olhem camaradas, a revolução é provável”: Claro, hoje nós sabemos que a revolução não aconteceu. Mas as condições materiais para tal revolução estão mais em curso no século XXI do que estavam em 1977. O que mudou além de todo o reconhecimento desde então foi a atmosfera existencial e emocional. As populações estão resignadas à tristeza do trabalho, mesmo se lhes dizem que as máquinas vão fazer com que o seu emprego desapareça. Devemos reconquistar o otimismo desse momento dos anos 70, tal como devemos cuidadosamente analisar todas as maniqueísmos de que o capitalismo dispôs para converter a confiança em desalento. Compreender como este processo de psico-deflação trabalhou é o primeiro passo para revertê-lo.

São estas as últimas palavras de Acid Communism, a introdução inacabada do livro que Mark Fisher deixou inacabado. Com elas, ficou a música que o acompanhou no processo. 

No Rádio Baldia de hoje estiveram na companhia de Guilherme Queiroz.

Regressamos para a semana à 1h da manhã de sexta para sábado, nos 107.9 FM da Rádio Universidade de Coimbra.

Alinhamento:

  1. Pink Floyd – Pow R. Toc. H. – The Piper at the Gates of Dawn (1967)
  2. Ike & Tina Turner – River Deep – Mountain High – River Deep – Mountain High (1966)
  3. The Hollies – Bus Stop – Bus Stop (1966)
  4. The Beatles – I’m Only Sleeping – Revolver (1966)
  5. The Beatles – Tomorrow Never Knows – Revolver (1966)
  6. Pink Floyd – Remember A Day – A Saucerful of Secrets (1968)
  7. Miles Davis – It’s About Time – Isle of Wight (Live) (1970)
  8. The Temptations – Psychedelic Shack – Psychedelic Shack (1970)
  9. The Temptations – Cloud Nine – Cloud Nine (1968)
  10. The Beatles – A Day In The Life (The Last Chord) – Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Studio Deluxe Edition) (1967)
  11. The Beatles – A Day In The Life – Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967)
  12. The Upsetters – My Girl – Africa’s Blood (1972)
  13. The Undisputed Truth – Take a Vacation From Life (And Visit Your Dreams) – Method To Madness (1976)
  14. Sly & The Family Stone – Only One Way Out of This Mess – A Whole New Thing (1977)