AUTOR: Guilherme Queiroz

DATA: 24.11.2021

DURAÇÃO: ...

A.A.C.M.

 

O colectivo.

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Surgiu quando, em 1910, Will Marion Cook e James Reese Europe fundaram o Clef Club. Mesmo depois de, na Europa, se formar com Dvorak e privar com Brahms, Cook regressa à marginalização nos Estados Unidos. Com Reese Europe funda o primeiro coletivo de músicos negros. Juntos, da marginalização forçada a que viram dotada a sua formação clássica, criam o jazz. Em 1912, tinha Gershwin 14 anos, protagonizam em colectivo o primeiro grande evento de jazz no Carnegie Hall.

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Surgiu quando, em 1965, Bill Dixon e Cecil Taylor se juntam a Paul e Carla Bley, Archie Shepp, Sun Ra ou Roswell Rudd e fundam em Nova Iorque a Jazz Composers Guild. Cria-se de forma a “sobreviverem enquanto músicos”, para “estabelecer a música no seu lugar próprio na sociedade; para acordar a consciência musical das massas para música que é essencial nas suas vidas; para proteger os músicos e compositores das forças existentes de exploração; para providenciar oportunidades para as audiências ouvirem a sua música; para providenciarem instalações para criação decente, ensaios, performance e disseminação de música.”
A “Revolução de Outubro” do Jazz não duraria muito.

Paul Bley (branco) argumentava:
“Todos os coletivos, independentemente da dimensão, são habitualmente levados a cabo por um par de pessoas chave que vêm a todas as reuniões e fazem todo o trabalho (…)
O colectivo encorajará certamente sobresocioalização, sobrefraternalização, sobredemocracia…
Tens os piores músicos a tocar com os melhores músicos (…)
Falem de terapia de grupo. Nada comparado com alguém que se levantava e ficava duas ou três horas a falar sobre a dor que sentiam, a luta – inter-grupo, inter-raça, inter-classe, inter-família, inter-música, inter-tudo.”

Bill Dixon (negro), por seu lado:

“Mesmo na Guild, composta por algumas pessoas bastante inteligentes, houve um subtil, mas aparente, indignação por parte dos membros brancos (e isto é algo que creio todas as pessoas brancas terem dentro de si) por um homem negro… eu, Cecil…. poder conceber e executar uma ideia que podia ser inteligente e benéfica para todos.”

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Surgiu quando os escravizados se reuniam em ring shouts – momentos espirituais inter-étnicos de dança, prece, canto, transe – e todas as vozes eram ouvidas, enquanto um e outro indivíduo se lançavam em improviso à boleia dos movimentos dos espíritos. A noção de intersubjetividade do bebop implica que a democracia participativa é a forma de economia política com a maior vitalidade e a maior potência. A crítica de jazz, tal como a historiografia branca, tende a ignorar a profundidade de questões históricas e culturais destas comunidades, fazendo leituras baseadas nas circunstâncias imediatas e imperativos históricos marcados por pressões externas. Do jazz, favorece-se a imagem cliché da espontaneidade, com músicos inconsequentes, facciosos, exóticos ou mesmo “selvagens”. De parte, fica a deliberação, o planeamento, a organização. De parte fica a comunidade e o coletivo, as novas formas de organização, a criação de outros mundos por vir.

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“O músico branco pode improvisar se tiver uma pauta em frente dele. Pode improvisar sobre algo que ouviu improvisado antes. Mas o músico negro, ele pega no seu intrumento de sopro e começa a soprar sons que nem ele pensou antes. Ele improvisa, ele cria, vem-lhe de dentro. É a sua alma; é essa música da alma (soul music)… Ele vai improvisar; ele vai trazê-lo de dentro de si próprio. E isso é o que tu e eu queremos. Tu e eu queremos criar uma organização que nos dará tant poder que poderemos sentar-nos e fazer o que bem desejarmos.” Malcolm X

“A música flui naturalmente como sangue, tão próxima a nós como as linhas das nossas mãos, e a principal alternativa à loucura do homem branco.” Stanley Crouch

“Formar uma associação e promover e assumir o tocar a nossa própria música vai implicar uma grande dose de sacrifício para cada um de nós. E pessoalmente, não me quero sacrificar por qualquer música standard.” Kelan Phil Cohran

“Toda a música é boa, e tenho a certeza de que este grupo não será um meio para impedir ninguém de fazer a maioria das coisas que cada um quer fazer. Mas ao menos teremos algo que definitiva e diretamente nos impulsione a cada momento, pessoalmente, porque isto é o que precisamos. Nós precisamos de ser lembrados enquanto representantes de nós mesmos.” Muhal Richard Abrams

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Nos anos 50 surge, com Sun Ra, a primeira Arkestra.
“Eu trabalho com equações (…)
o mundo como está é o resultado de as pessoas fazerem o possível.
Devia haver outros caminhos.”
Marshal Allen:
“Ele queria que tocasses o que não sabias.
De forma a que tivesses a cena da vibração do dia. Isso é o que eu sinto hoje, isto é o que eu quero expressar hoje, e aqui é onde expressas isso.
E aí, já não tens nada a que te agarrar.”

Em 1960 surge com Horace Tapscott, em Los Angeles, a Union of God’s Musicians and Artists Ascension, e com ela a Pan-Afrikan People Orchestra. Em concerto, Tapscott introduzia as suas canções dizendo “Aqui está outra que escreveram através de mim”, havendo um profundo sentimento que mesmo quando ele toca as suas próprias composições, ele toca música que pertence à comunidade.

Em 1965, surge com Muhal Richard Abrams, Kelan Phil Cohran, Jodie Christian e Steve McCall novo coletivo de músicos em Chicago. Mais tarde, conformar-se-ia na Association for the Advancement of Creative Musicians (A.A.C.M.).
“Esperamos criar uma atmosfera espontânea que seja única à nossa herança e do artista que performa. O nosso objetivo é universal no seu apelo, e é necessário para o avanço, desenvolvimento e compreensão da nova música.”
Mais de 50 anos depois, a A.A.C.M. ainda vive, renovando-se geração pós geração, na luta pela formação, promoção e defesa da nova música.

Chicago, 2017. Surge a Participatory Music Coallition.
“Mais do que entretenimento, a música participatória é aquela que é feita para coordenar pessoas, juntá-las em comunidade, orientá-las a um propósito comum. Reconhecemos a conjunção da música, dança, arte espiritualidade, ritual e cerimónia como os afluentes de tantas tradições de Grande Música Negra que fluíram desde o Sul de Chicago através dos Estados Unidos, e ao redor do mundo. Enquanto o séc. XX viu o seu organismo vital gradualmente desmembrado pelas maquinarias da indústria de gravação e entretenimento, o nosso projeto é nutrir a integridade e completude da música enquanto a FORÇA DE CURA DO UNIVERSO.”

O Rádio Baldia #3 é dedicado a este legado de coletivo;
a estas terceiras vias em que a coletividade flui em direção a um outro mundo possível.

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Alinhamento:

  1. Horace Tapscott and the Pan-Afrikan People Arkestra – Why Don’t You Listen – Live at the LACMA (1998)
  2. Sun Ra Arkestra – Black Myth / The Shadows Took Shape / The Strange World / Journey Through the Outer Darkness – Nuits de la Fondation Maeght Vol. 2 (1970)
  3. Roscoe Mitchell, Don Moye, Jerome Cooper – Chant – Wildflowers: The New York Loft Jazz Sessions (1976)
  4. Partipatory Music Coallition – Blue Nile (Wayne Shorter, Luba Rashiek) – Retrograde Sessions: Live @Transition East (2017)
  5.  Angel Bat Dawid & The Brothahood – We Are Starzz – Live (2020)

Texto adaptado de:

A Power Stronger Than Itself: The AACM and American Experimental Music – George E. Lewis – University Chicago Press (2008)
The Great Learning: Interview with Roscoe Mitchell – Michael Schmelling – The Wire 375 (May 2015)
The Last Disciples: Interview with The Sun Ra Arkestra – Marcus Maddox – The Wire 440 (Oct 2020)
The Primer: Horace Tapscott & The Pan-Afrikan People Arkestra – Savage Pencil – The Wire 453 (Nov 2021)
http://www.participatorymusiccoalition.org/

Pan-Afrikan People Orchestra