AUTOR: Isabel Simões

DATA: 27.12.2022

DURAÇÃO: ...

O escritor e gestor cultural António Mega Ferreira, que morreu hoje, em Lisboa, aos 73 anos, disse um dia que gostaria de ficar “conhecido na história como um tipo que fez essas coisas todas” na área da cultura.

Licenciado em Direito, foi jornalista, escritor, gestor cultural, liderou a representação de Portugal como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt, em 1997, presidiu a candidatura de Lisboa à Expo98, de que foi comissário, foi administrador da Parque Expo, presidente do Centro Cultural de Belém e diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura, que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa e as suas três escolas.

António Mega Ferreira nasceu em Lisboa, em 25 de março de 1949, na Mouraria, na rua Marquês de Ponte de Lima, onde viveu a infância e a adolescência.

Era filho de um comerciante, detentor de uma papelaria na Baixa lisboeta, sócio de uma antiga loja de discos, republicano, anti-salazarista e anticlerical. Foi o pai que escolheu o nome próprio do autor e gestor cultural, António Taurino, congregando, num só, o nome do avô paterno e o do avô materno.

Mega Ferreira cresceu com a música italiana da época, com a banda desenhada do Cavaleiro Andante e com a leitura da biblioteca da casa da família, com a qual se iniciou em Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, escritores que cedo entraram na galeria dos seus afetos, como mais tarde viria a acontecer com Jorge de Sena e os seus “Sinais de Fogo”.

A morte do pai, em 1969, levou-o ao mercado de trabalho, primeiro como tradutor de imprensa estrangeira, no antigo Secretariado Nacional de Informação do Estado Novo, depois com a opção pelo jornalismo, que ganhou forma com a partida para Manchester, em 1972, onde se formou.

À camisola vermelha do Benfica, clube de eleição desde a infância, juntou então, num segundo plano, a camisola vermelha do Manchester United. Manteve-se leal aos dois clubes.

No regresso a Lisboa, antes de 1974, entrou na delegação do Comércio do Funchal, jornal oposicionista dirigido por Vicente Jorge Silva (1945-2020). Viveu a revolução, trabalhou nos gabinetes dos republicanos Raul Rego (1913-2002), ex-diretor do antigo jornal República, e do historiador e ensaísta Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), quando foram ministros de governos provisórios, e foi um dos nomes iniciais da redação do vespertino Jornal Novo, fundado em abril de 1975.

No percurso de Mega Ferreira, pouco depois, seguiu-se o semanário Expresso, onde permaneceu até 1978, quando entrou para a Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP), antecessora da agência Lusa, e daqui partiu para a redação da RTP/Informação 2 e para o semanário O Jornal, já no início da década de 1980, onde também assumiu a chefia de redação do Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL).

Foi nestes anos que se estreou como escritor. Primeiro com um livro sobre a pintura de Graça Morais, publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, depois com a sua primeira obra de ficção, “O Heliventilador de Resende”, surgida em 1985, na antiga Difel.

Em 1996, deixou o jornalismo, para passar a dirigir o Círculo de Leitores e as suas edições, grupo para o qual já criara e dirigira a revista Ler. Não abandonou porém a escrita para os jornais, onde se manteve como cronista, em títulos como Diário de Notícias, Expresso, O Independente, Público, Egoísta, Visão e JL.

 

O trabalho com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses começou a ganhar forma em 1988, a convite do escritor e gestor Vasco Graça Moura (1942-2014), que a presidia.

 

Um encontro que, pouco depois, daria origem à candidatura de Lisboa à realização da Exposição Internacional de 1998, sob o tema dos Oceanos

Em junho de 1998, em entrevista à agência Lusa, Mega Ferreira recordou a palavra de ordem do MRPP, que o seduzira na Faculdade de Direito, antes de 1974, para dizer que “ousar lutar, ousar vencer” seria o “grande ensinamento” deixado ao país pela exposição.

 

Para Mega Ferreira, a política não o movia, nunca o moveu, não era um fim, era antes algo subalterno à cultura, e não podia ser de outra maneira, como afirmava. Toda a opção política deve obedecer a uma visão cultural” disse.

Exatamente o oposto da prática corrente e da atualidade, deste “capitalismo no seu pior”, afirmou em entrevista  à revista Prelo, da Imprensa Nacional, . “Isto é o capitalismo na sua versão mais rasteira, aprendida em ‘MBA’ de universidades neocapitalistas e neoliberais (…), ensinado como pensamento dominante”.

 

Nas quase três décadas como gestor, nunca deixou a escrita de lado. Somou mais de 30 livros, a maioria publicada desde 2000, entre narrativa, ensaio, poesia, biografia.

Depois do cruzamento de ficções e referências de “O Heliventilador de Resende”, surgiram “As Palavras Difíceis” (1991), conto ilustrado por Fernanda Fragateiro, “Os Princípios do Fim” (1992), primeira coletânea de poemas, e os ensaios de “Os Nomes da Europa” (1994).

A produção intensificou-se a partir de 2000, com “A Borboleta de Nabokov”, primeira recolha de textos jornalísticos, quase todos dedicados a escritores, artistas e suas obras.

Seguiram-se os universos ficcionais de “A Expressão dos Afectos” (2001), Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, “Amor” (2002), “As Caixas Chinesas” (2002) e “O que Há de Voltar a Passar” (2003), a que juntou nova coletânea de textos de imprensa, “Uma Caligrafia de Prazeres” (2003).

Entrou no universo biográfico com “Retratos de Sombra” (2003) e a “Fotobiografia de Teixeira de Pascoaes” (2003), seguindo-se “Fazer pela Vida: um retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor” (2005), “Graça Morais: os olhos azuis do mar” (2005), “Abel Salazar: o desenhador compulsivo” (2006) e “Por D. Quixote” (2006), a quem voltaria dez anos mais tarde (“O Essencial sobre Dom Quixote”).

Um quadro de Matisse deu-lhe o mote para a estreia no romance, com “A Blusa Romena” (2008), e os retratos de Lisboa da artista norte-americana Amy Yoes permitiram-lhe uma história de amor, em “Lisboa Song” (2009).

Em maio de 2021, publicou “Desamigados – ou como cancelar amizades sem carregar no botão”, avançando pelos universos da literatura, da história, da filosofia, ao evocar duas dezenas de personalidades, que vão dos imperadores César e Bruto aos escritores Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, e as suas amizades “que acabaram mal”.

Nos derradeiros títulos, prevalece porém a paixão por Itália. É o caso “Crónicas italianas”, Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga 2022, da Associação Portuguesa de Escritores, surgida em outubro do ano passado, pouco depois de essa paixão lhe ter valido o Prémio Roma-Lisboa, atribuído pela Fundação Prémio Roma em colaboração com a Embaixada de Itália em Lisboa.

À Prelo, quando da edição de “Hotel Locarno”, em 2015, disse que gostaria de ficar “conhecido na história como um tipo que fez essas coisas todas”, dos jornais, aos livros, à gestão da Expo, do CCB e da Metropolitana, sempre com a Cultura por rumo.

Texto: Agência Lusa

Fotografia: Plataforma Wook