AUTOR: Isabel Simões

DATA: 07.04.2023

DURAÇÃO: ...

Uma reflexão sobre “o tempo da ciência, o tempo social, o tempo da vida, o tempo da natureza”, é o que nos propõe o espetáculo de teatro e dança oferecido pela companhia que habita a Oficina Municipal do Teatro em Coimbra. “Time” tem espetáculos marcados até 22 de abril (interrompe apenas entre 7 e 9 de abril).

As próximas  sessões estão marcadas para os dias 12, 13, 19 e 20 de abril às 19h00.  E também para os dias 14, 15, 21 e 22 abril mas às 21h30.

A RUC esteve à conversa com a coreógrafa Aldara Bizarro, o ator João Santos, as atrizes, Sofia Coelho e Margarida Sousa e a intérprete de Língua Gestual Portuguesa (LGP),  Inês Lino.

Quais as grandes dificuldades que teve neste trabalho?

Aldara Bizarro –  Eu vim fazer uma peça de dança para três atores e tínhamos este tema que queríamos explorar que é o Tempo. Fui convidada durante a pandemia e nós fizemos muitas reuniões por zoom e falávamos muito sobre o que se estava a passar.

Uma das coisas que era comum a todos a mim, à Isa Craveiro e ao João Santos, as pessoas que estavam inicialmente na conversa, era que nós tínhamos uma relação com o tempo muito diferente. Eu explico desta maneira… tinha descoberto uma forma de estar com uma consciência do tempo que não tinha anteriormente. Comecei a trabalhar com eles e depois a partir de uma certa altura, a Inês Lino com o Pedro Oliveira apareceram e eu tinha uma pessoa (risos…) sempre presente nos ensaios, nunca me tinha acontecido.

Já tive vários projetos que tiveram interpretação da Língua Gestual Portuguesa mas eu passava o texto, as pessoas apareciam já o espetáculo estava feito. Muitas vezes só apareciam no  ensaio geral. O Teatrão tem uma parceria e a Inês estava sempre presente, era impossível não integrá-la porque aquilo que ela fazia era mesmo muito bonito. A Língua Gestual Portuguesa é encantadora, as expressões, os gestos, os braços. Eu sou da dança, sou fascinada pelo gesto, nós não conseguimos tirar os olhos dela e foi assim que começámos a ter vontade de a integrar.

Depois percebemos que ela respondia aos estímulos de uma forma muito descomplexada e muito imediata e fomo-nos cativando por ela e depois começámos nós a gestuar, íamos aprendendo. Eu tive que travar muita coisa (risos) porque os atores queriam muito aprender e aprenderam rapidamente. O Pedro Oliveira estava connosco a ensinar-nos. Nós temos esta música, esta canção que cantávamos e ela tinha que ser traduzida e depois aprendemos todos a fazer a canção, a gestuar, a interpretar a canção.

A dificuldade deste projeto foi mesmo estudar todas as coisas que estão relacionadas com o tempo: o tempo da ciência, da física e depois o tempo social, o tempo da vida , o tempo da natureza. Enfim,  esse tipo de informação é que foi o nosso grande desafio.

Eu normalmente uso esse processo, estudo, tenho curiosidade por um assunto, a equipa toda estuda e depois faço exercícios para as coisas aparecerem de uma forma orgânica e aparecem conforme o interesse de cada um.

Por isso, na peça um é mais científico, o outro só quer a natureza e quer-se guiar por isso, pelo tempo das flores, das plantas, das árvores e a outra quer estar sobretudo interessada num tempo que é um escape ao tempo da produção. O tempo que nos obrigam agora a viver, o tempo associado ao capitalismo desenfreado, que é ma pessoa que está mais interessada numa coisa mais holística mais abrangente, no ‘mindfulness’.

Pessoalmente, mesmo quando só trabalho com bailarinos, já cruzo texto com dança, com o movimento. Gosto, parece que o movimento não chega (risos). A boca, a voz também faz parte do movimento e cria um ritmo, cria um tempo muito interessante. Já faço essa exploração há algum tempo e aqui foi muito bom trabalhar assim com eles. Com esta equipa muito apetrechada que é o João Santos, a Margarida Sousa e a Sofia Coelho e depois a Inês Lino que é a interprete da Língua Gestual Portuguesa.

Temos uma equipa muito grande, temos a Morgana Machado, que fez este objeto, eu tinha-lhe pedido um sítio elevado para os atores subirem, e terem um momento de lugar, um momento em que pudessem estar e não se preocuparem com o tempo e ela fez este objeto. Pode parecer uma nave espacial, pode parecer um monte, pode parecer um relógio de sol, faz-nos lembrar muitas coisas.

Depois trabalhámos também com um filósofo que é o André Barata, tivemos uma ‘master class’  com ele em torno também daquilo que ele pensa sobre o tempo. O André falou-nos muito sobre este tempo da vida, este tempo real em que nós deixámos de ter controlo e que agora nos controla. Lemos muitas coisas. Estivemos a trabalhar dois meses mas ainda podíamos trabalhar mais porque é um assunto muito amplo.

A peça começa com a mitologia grega,  vamos evoluindo e passamos por textos escritos por poetas portugueses, Fernando Pessoa e os seus heterónimos, Ana Luísa Amaral e outros. Esta escolha foi óbvia e imediata ou levou algum tempo a ser realizada?

Aldara Bizarro – Levou bastante tempo, nós escolhemos partes de poemas,  e referimos os poetas e as poetas. Andámos à procura todos, faz parte deste processo que eu lhe falei que é, nós estudamos até à exaustão e depois, vamos falando uns com os outros e contando o que descobrimos. Nós estamos a falar de nós próprios e portanto aquilo é vivido, tem uma vida própria e passa a ser valioso para o projeto. Podemos dar-lhe corpo.

A Aldara recebe os ‘input’ que os atores e as atrizes lhe dão?

Aldara Bizarro – Eu estou muito à escuta, é um processo de uma grande escuta e de dar estímulos objectivos para encontrarmos determinadas matérias para depois podermo-nos relacionar com o corpo, com a palavra. Foram dois meses de trabalho sem parar. O Luís Pedro Madeira  fez a música, a montagem e operação de som e luz  estiveram  por conta de Jonathan Azevedo e Nuno Pompeu.

Como foi este trabalho do corpo?  Como é que se prepararam, para além daquilo que já fazem como atores, houve alguma preparação especial?

Margarida Sousa –  Houve, houve claro. É um espetáculo de dança. No teatro nós também já preparamos o corpo, o teatro também vive do corpo. Tendo esta particularidade, houve e há e vai continuar a existir um trabalho que  tem a ver com resistência que a Aldara fez connosco desde o início, e que nós religiosamente fazemos todos os dias.

A Aldara falou muito desta ideia de trabalhar muito, de insistir muito, é um endurance na verdade, para que o corpo responda àquilo que é a exigência do trabalho. De facto, nós não paramos. No Teatrão normalmente a questão física está lá. Em Time há um trabalho de uma insistência, a Aldara diz muitas vezes – “não arrefeçam, não arrefeçam”, para o corpo estar sempre disponível para o espetáculo.

João Santos – Eu acho que há uma consciência no trabalho do Teatrão de que o corpo é uma ferramenta de trabalho para o ator, como é a voz. Na verdade nesta procura constante que nós fazemos às vezes de outras linguagens, de nos desafiar a ir fazer algumas experiências noutro tipo de linguagens e estéticas também, já é uma característica dos nossos espetáculos, nós fazemos esse tipo de trabalho.

Em Time, em particular, talvez de uma forma mais sistematizada do ponto de vista da dança. Sempre muito influenciados pelos encenadores com que trabalhamos vamos aprendendo certas metodologias. Vamos recolhendo ferramentas. Certamente que muitas das coisas que aprendemos com a Aldara iremos utilizar no futuro.

Hoje, a dança contemporânea não é só movimento, os coreógrafos usam a voz e também outros efeitos. Ficaram com vontade de repetir dança noutras peças ou foi demasiado violento e agora têm de fazer uma pausa?

Sofia Coelho – Acho que  vontade há porque no Teatrão nós trabalhamos muito a parte física, o corpo. Embora, o João e a Guida já tenham trabalhado no Anticorpus, por exemplo, com alguém mais da área do corpo, eu é a primeira vez que estou a trabalhar com alguém da área da dança e do movimento. Era uma curiosidade que tinha e já era algo que gostava de experimentar.

Talvez não soubesse o quanto exigente poderia ser ou quanto o meu corpo estaria preparado para. Muitas vezes pensamos o que é este espetáculo? É um espetáculo de dança, é um espetáculo movimento? É um espetáculo de teatro? Então acho que estamos num sítio em que consideramos que é um espetáculo de dança para atores, para corpos que não são bailarinos mas que trabalham com o movimento e com o seu corpo na medida das suas possibilidades. A Aldara, acho que trabalha muito bem isso connosco. E isso dá vontade de voltar a trabalhar nessa área do movimento, da dança.

E sim, acredito que trabalhar isto regularmente durante muitos anos será exigente para o corpo. E não sei se daqui a uns anos eu terei essa capacidade também.

Inês, a sua formação é em Língua Gestual Portuguesa, não sei se no que estudou também tem disciplinas de Teatro e de pesquisa. Foi a primeira vez que representou como atriz em que a Língua Gestual Portuguesa está inserida no próprio espetáculo?

Inês Lino – Primeiro dizer que ainda estou na fase de estágio, ainda não estou mesmo licenciada no curso de Língua Gestual Portuguesa, estou a estagiar no Teatrão e estudo na ESEC, a Escola Superior de Educação de Coimbra. Desde já elogiar também o Pedro Oliveira que é o intérprete, que me tem apoiado em toda esta fase do teatro.

Já tinha feito uma parte aqui no Teatrão  um espetáculo que era “Os Cadáveres são Bons para Esconder Minas” e tinha feito naquela posição tradicional do intérprete. É a primeira vez que estou  afazer algo parecido, mesmo a incorporar a peça, a correr a dançar como eles.

No curso não temos disciplinas de Teatro, é verdade que nas disciplinas de LGP os professores treinam muito connosco a expressão, mas não de teatro em si.  Está a ser uma oportunidade muito boa, estou a gostar muito.

E aquele quase final de os atores passarem para o seu papel e interpretarem a LGP? Eles fizeram tudo bem ou houve ali coisas que a Inês mudaria?

Inês Lino – Eu acho que em um mês, ou menos, eles estão ótimos. Já tinham feito o primeiro ano de curso. Mas estão muito bem, aprenderam muito bem os gestos. Claro que o João acaba por ter um pouco de facilidade, a Margarida como é esquerdina, às vezes o cérebro baralha um bocadinho, mas acho que está muito bem, é engraçado.

João Santos -É interessante porque na verdade, hoje em dia, assistimos a muitos espetáculos que vêm questionar e provocar uma reflexão acerca do papel, neste caso, até dos interpretes de LGP, na sua relação com as obras. Time não é um caso isolado, há vários espetáculos que se estão a apresentar e que vêm um pouco propor uma relação diferente e eu acho que isso é muito interessante.

Na verdade no cinema e nas séries de televisão isso até já é uma coisa que é muito mais feita, neste momento. Julgo que em Portugal no teatro e na dança em geral estamos um pouco à procura da forma de incluir também essa linguagem.

Vocês têm um público que vos adora. Muito dele já veio aos ensaios abertos e certamente vai repetir. Que espectativa é que têm em relação ao acolhimento de Time?

Margarida Sousa –  Nós estamos com muita muita expectativa. Na verdade, em todos os espetáculos, o Teatrão gosta muito de arriscar em coisas diferentes, chamar criadores de fora, experimentar novas linguagens, cruzar linguagens. Eu acho que há uma identidade que tem a ver com esta necessidade de  discutir alguma coisa com o público. Em todos os espetáculos há esta vontade de perceber como é que o público reage.

Time entra neste limbo entre o teatro e a dança e, portanto, estamos muito expectantes para saber como é que o público vai ler, não só a proposta estética, mas o que o espetáculo propõe discutir e que tem a ver com esta ideia do tempo. O espetáculo é para público geral mas pensado muito para os adolescentes.

Estamos a falar de alunos e jovens a partir dos 14, 15 anos. No final das sessões para escolas haverá sempre conversa com os alunos para perceber como é a questão do tempo, o que nós fazemos com o tempo, o que é que o tempo nos faz a nós. Não no sentido de vamos lá fazer a lição, muito mais para tentar perceber quais são as leituras que eles têm do espetáculo, eles e o público geral.

Do vosso ponto de vista, a relação que cada um tem com o tempo será igual ou diferente no futuro? Houve alguma transformação, depois de toda esta reflexão? 

Sofia Coelho – No meu ponto de vista foi um ponto de partida para a discussão para o espetáculo.  A Aldara no primeiro encontro questionou precisamente a cada um de nós como é que nós lidávamos com o tempo. Foi a partir de cada perspetiva dessas que surgiu toda esta discussão, este discurso que nós fizemos.

Essa discussão e conhecer o André Barata, ouvir o que ele tinha a dizer, reforçou ainda mais, se calhar, aquilo que eu já pensava e que agora é tão claro – “que a vida é um instante e  amanhã não há tempo”. Portanto, a vida é sempre mais importante do que andar a correr atrás do tempo, na minha perspetiva. Por isso, acho que o meu tempo não é o tempo certo para este tempo e não me encaixo.

Margarida Sousa – No meu caso a angústia não passou. Obviamente que nós lemos André Barata ou outra bibliografia ou falamos com a professora Helena Caldeira e claro tudo faz sentido. Nós andamos aqui nesta vida… mas o tempo é um monstro muito grande.

O que é que o sistema fez com o tempo? O que nós fizemos com o tempo? É muito grande o monstro. Há aqui muito trabalho a fazer. Claramente fazendo o espetáculo há uma tomada de consciência nossa, acima de tudo há uma vontade de discutir isso com o público.

Inês Lino – Antes também achava que o tempo é sempre a correr, temos imensas coisas. O meu calendário está cheio de coisas para eu fazer: estudar, fazer outros projetos. Agora há uma parte muito interessante desta peça que eu gostei. Por exemplo, quando estamos lá em cima, naquele tempo em que estamos parados, quietos, só a olhar, acho que isso é o tempo de pausa que às vezes precisamos na nossa vida para não colapsar, para o cérebro não parar. Para não haver um momento de ‘back down’.

Então acho que esta parte da peça foi o que eu vi com outros olhos para também ao longo da vida termos tempo para descansar, e isso é importante.

João Santos – Tal como a Aldara já tinha dito, eu acho que nós estamos a atravessar um momento muito particular na nossa história coletiva, por conta do que aconteceu com a pandemia. De uma forma assim generalizada estamos todos a refletir sobre a forma como vivemos as nossas vidas, como nos relacionamos aos mais variados níveis, familiar, profissional, e de que forma é que isso está relacionado com o tempo.

Mais do que decisões, este projeto, assim como os outros, permitem-nos fazer uma pesquisa um pouco mais aprofundada sobre os assuntos. Isso permite-nos, às vezes, ter uma consciência das coisas que no dia-a-dia, por conta da velocidade a que estamos, nós não temos capacidade de ter.

Porque os assuntos são mesmo complicados e nem sempre nós conseguimos lê-los na totalidade porque está tudo relacionado. Na verdade o que nos puxa mais, é que talvez este espetáculo nos permita  começar uma bonita conversa com outras pessoas sobre o que andamos todos a fazer. Sobre de que forma é que podemos estar mais no tempo uns dos outros.

O que me parece é que cada vez mais andamos em contratempo ou andamos a destempo, os tempos não coincidem. Então, se este espetáculo for uma ótima oportunidade para nos encontrarmos acho que já é meia batalha ganha.

Fotografia: Teatrão@Carlos Gomes