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“Vocês são precários ou são escravos?”: uma discussão entre reitor e investigadores

Amílcar Falcão afirma-se aliado dos investigadores e coloca o alvo nos sucessivos governos. Reitor diz ter uma solução que já apresentou, descarta que alunos possam ser prejudicados pelo fim dos contratos e fala de currículos alimentados por quem não assina os artigos.

Fizeram-se perguntas, ouviram-se reivindicações, gritos de revolta, um minuto de silêncio e até um FRA que não o foi – isto porque, dizem os investigadores, para a ciência não vai  mesmo “nada, nada, nada”. Passava uma hora deste o momento para o qual a manifestação tinha sido marcada e já se via muitos dos protestantes a desmobilizar. Já era muito pouca a comunicação social presente junto à Porta Férrea: os jornalistas falaram com quem puderam e receberam a indicação de que a reitoria não ia estar presente, pelo que a resposta institucional seria enviadas às redações via comunicado. Foi portanto com grande espanto que, bem perto da hora de almoço, se aproximou o reitor Amílcar Falcão de mochila às costas, preparado a responder às questões dos profissionais, mas a querer deixar uma mensagem: a manifestação é justa, mas o alvo escolhido é “o errado”.

Que manifestação?

O protesto intitulado “A UC é para investigadores?” surge para alertar para a precariedade da profissão, que muitas vezes é acumulada com a docência. Até ao fim do ano de 2024, são 69 os investigadores cujo contrato termina. Cerca de 270 investigadores vivem uma “situação laboral instável e sem perspetivas de integração” e são poucos aqueles que veem a possibilidade de ingressar na carreira no curto prazo. Ainda antes da manifestação, marcada para as 11h00 de sexta-feira na Porta Férrea, a UC já tinha reagido: “A UC considera que uma solução cabal para o problema do emprego científico, acumulado ao longo de décadas, transcende em muito a capacidade atual das universidades e exige uma reformulação do modelo de financiamento público com o relevante aumento das dotações atribuídas”.

“Eu já lutei mais do que vocês imaginam!”, diz Amílcar Falcão

Chegado o reitor, montou-se uma espécie de reunião a céu aberto que durou quase uma hora. Se os investigadores o abordaram de dedo em riste, Amílcar Falcão procurou pontos de contacto e mostrou-se solidário com a luta que estava a ser travada. Depois de afastar a possibilidade de os alunos da Universidade saírem lesados pelo fim do contrato dos seus docentes (e muitas vezes orientadores), uma vez que a lei dita que estes devem ser imediatamente substituídos, o reitor da Universidade de Coimbra atirou aos governos: “Não fui eu que abri 1.000 vagas, não fui eu que criei 2.700 precários. Isto é um processo de muitos anos”.

No centro da discussão começou por estar o programa FCT-Tenure, criado durante o último governo da ex-Ministra Elvira Fortunato. Amílcar Falcão começa por sublinhar que o erro surgiu logo à partida: enquanto membro da comissão permanente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), alertou que não faria sentido haver a possibilidade de abrir vagas para docentes e investigadores em simultâneo. “Mas se não concordava com essa possibilidade, porque é que a UC não prima pela diferença e usa os Tenure para contratar investigadores?”, questionou um dos manifestantes. “Porque não tenho dinheiro“, reagiu o reitor

“O emprego científico é um problema muito sério que tem de ser resolvido, mas não pode ser mandando o custo para cima das Universidades”

Para contextualizar a sua posição, Amílcar Falcão lembrou o rumo dos acontecimentos: “O problema começa há 20 anos, quando investigadores foram ficando de projeto em projeto, sempre com contratos a termo. Chegámos a um momento em que isto cria um número de pessoas que é ingerível. O que é que foi feito a determinada altura pelo Ministro Manuel Heitor? Emprego científico, o tal Decreto-Lei n.º 57/2016. Nessa altura, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) descapitalizou-se e passou a usar dinheiro que devia ser para investigação para pagar salários. Isto criou um problema adicional: como não aumentaram o orçamento, parte importante passou a ser para pagar salários. Esse dinheiro faz com que quando concorremos a projetos da FCT as taxas de sucesso sejam miseráveis (3%/4%). Isto não tem sentido”. Mas há alguma solução? “Peguem nesse dinheiro e metam nas Universidades que nós pagamos os salários cá dentro. […] O problema foi mal resolvido, mas não foi por falta de aviso“.

Ainda no âmbito do programa FCT-Tenure, o reitor foi questionado sobre o porquê de a UC não ter avançado com os concursos e de ainda estar “a aguardar”. “Não estamos a aguardar, estamos a criar júris. Mas há uma dúvida que queria ver esclarecida e que nem o Ministro esclarece. Se os resultados do concurso forem contestados, há duas hipóteses: ou se acrescentam vagas ou se alteram vagas…”, “Não me parece um cenário muito provável tirar vagas que já foram atribuídas”, interpelou um investigador. “Mas é o que está escrito. No meu lugar, abria concurso antes de conhecer o resultado definitivo?“.

Às vezes, investigadores que estão na docência não são substituídos imediatamente após término de contrato: “Não estão numa Universidade perfeita”

Tema quente foi também a conjugação entre investigação e docência: uma via “voluntária”, sublinha o reitor, mas que beneficia ambas as partes, uma vez que enriquece o currículo. Os investigadores apontam que muitas vezes a sua saída deixa os estudantes que orientam sem chão, dado que ficam sem alguém que ensine. Na resposta, Amílcar Falcão frisa que se trata de uma obrigatoriedade legal e lamenta que muitas vezes a sua instituição não funcione como gostava. No entanto, afasta responsabilidades (diz que só são suas na medida em que é a cara da UC), que devem ser imputadas aos Conselhos Científicos de cada uma das faculdades.

“Incomoda-me que há demasiada gente que anda a alimentar currículos de outros. É assédio moral”

O reitor Amílcar Falcão puxou ainda um outro tema sensível: os currículos alimentados com artigos redigidos por investigadores fantasma. “É melhor não falarmos disso…”, ouviu-se logo da boca de um investigador, que garante que é algo que todos os presentes são obrigados a fazer por professores que estão acima deles na cadeia hierárquica. “(Reitor) Vocês deviam denunciar isso! (Investigador 1) Acha que eu tenho coragem de o dizer em público? (Reitor) Não tem coragem, mas se forem 100 se calhar já pode ter coragem (Investigadora 2) O que é que a Universidade tem feito para combater este problema? (Reitor) É uma questão de ética, temos o código de conduta”.

Não só pela sensibilidade do tema para os investigadores o tema foi motivo de tensão. Uma das investigadores questionou o reitor por dizer que corre o boato de que o próprio reitor tem telhados de vidro. “O meu currículo é longo e se quiser podemos falar artigo a artigo que eu consigo falar de tudo. Pode-me dar os parabéns. Quando um trabalho é feito com o meu nome, eu dou o meu contributo. Nem quero estar em artigos em que não participo porque não tenho nada a ver”, garante Amílcar Falcão.

A conversa completa entre reitor e investigadores, que durou quase uma hora, pode ser ouvida no programa “Há Vida(s) nesta cidade!” do passado sábado, que pode consultar em formato podcast no topo da página.

 

 

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