A forma orgânica do improviso | Space Festival 2024
Por entre planícies banhadas pelas margens do Mondego, em tons dourados dos restantes cereais das colheitas de Verão, a pouco mais de trinta minutos de Coimbra, a RUC chegou à primeira estação do Space Festival deste ano – a vila de Montemor-O-Velho – para três dias dedicados à experimentação e improvisação musical levada, desde 2021, a territórios de baixa densidade populacional.
Linhas traçadas pelo chimpanzé astronauta
Com o castelo a servir como pano de fundo, começou o segundo dia de festival, já quando o sol ia baixo. Boris Chimp 504, projecto de Miguel Neto (som) e Rodrigo Carvalho (visuais), abriram o Teatro Esther de Carvalho para uma apresentação audiovisual do seu mais recente trabalho – “Red Spectrum”. Ao esquema monocromático da sua imagem, juntam agora o vermelho. O trabalho audiovisual inspira-se no telescópio espacial Spitzer que, após ter sido enviado para missão e deixar de enviar sinal por alguns instantes, voltou a transmitir – nos comprimentos de onda de luz infravermelha.
É um novo capítulo para Boris Chimp 504, que abraçam o desconhecido e exploram novos territórios e dimensões espaciais. Esta procura faz-se através da união do som com o visual, navegando entre formas geométricas e orgânicas. É uma linguagem audiovisual muito própria, esta que Neto e Carvalho criaram. A linha vermelha que traçam no ecrã não é constante, movimentando-se pela calma da imensidão do universo e o complexo do mundo, adjectivos que também ajudam a descrever as criações desta dupla.
É redutor tentar descrever as composições sonoras da dupla, já que bebem de tantos universos musicais – noise, psicadélica, ambiente e eletrónica. Mesmo saltando entre o real e a ficção, temos os pés bem assentes durante toda a performance. Imersos nos visuais que reagem ao som – e criados em tempo real – fomos levados à descoberta, com Boris Chimp 504. Não consigo precisar por onde é que andámos, mas a verdade é que nos levaram a viajar durante 45 minutos.
Homónimos e uma segunda primeira vez
Voltámos a aterrar no Teatro Esther de Carvalho para escutar o baterista Pedro Melo Alves e o seu convidado homónimo e guitarrista, Pedro Branco. Envoltos num espaço acolhedor, com a madeira pintada e cadeiras confortáveis, quem ali estava foi embalado pelas criações improvisadas pela dupla em palco. Uma “caixa de pandora” estava prestes a abrir-se – expressão que Pedro Melo Alves utilizou para descrever este espetáculo. Esta foi uma segunda primeira vez – coisa estranha de se dizer – mas talvez isso tenha tornado mais particular este encontro. Em 2018, Melo Alves decidiu criar as “Conundrum Sessions”, uma busca pela frescura dos primeiros encontros e, por acasos da vida, Pedro Branco foi o seu primeiro convidado. Mas, se a ideia desta sessões são essas primeiras vezes, porquê regressar a palco com Branco no mesmo contexto? Porque tropeçamos em coincidências, e o guitarrista estava à frente de Melo Alves quando este recebeu a proposta do Space Festival – como desvendou em entrevista à RUC. Um reencontro assumido pelos artistas que, mais uma vez, resultou numa sessão de improviso que demonstra a mestria dos dois músicos.
Melo Alves manuseava cada baqueta como se fosse uma extensão do seu corpo, enquanto Branco movia-se expressivamente pelo palco.Timidamente, ia também soltando a sua voz, que se misturava com os sons dos instrumentos e passava despercebida. Gradualmente, íamos entrando pelo mundo dos Pedros, onde tudo soava a novo. O respeito entre os dois era palpável, puxando-se mutuamente nestas criações, mas rapidamente a atingir o seu ponto de equilíbrio. Uma esfera que navega pelo seu universo musical, mas nunca perdendo o norte.
No final do primeiro bloco de improviso, já com mais de meia hora de criação sonora, Melo Alves surgiu por entre o seu kit de bateria e explicou este encontro e a ideia de novidade que está constantemente à procura. Um teatro praticamente cheio recuperou o fôlego para a segunda parte desta apresentação. Se na primeira tínhamos sentido um controlo no meio do desconhecido – em que as luzes suaves não nos confundiam o olhar – esta continuação ganhou rapidamente corpo, escalando para batidas e ritmos mais crus e duros. É a chegada ao final, o limite da exploração sonora. Mas será que esta tem limite? Será que a criatividade também tem um? Responder com um sim cego soa a injusto e impossível, ainda para mais após vivenciar este concerto. Uma segunda primeira vez que soube a pouco, onde acreditamos que este limite dificilmente se atingiu.
Singularidade de um espaço
Com a brisa noturna a pairar, recuperámos para o último concerto da noite – a reunião da Orquestra de Guitarras e Baixos Elétricos (OGBE). Chegámos ao vortex do Space Festival, materializado no espaço físico da TOCA. No início, uma Orquestra com pouco mais de 20 músicos, com guitarras de um lado, baixos do outro e uma bateria e percussão a dividir as duas. Pelas laterais e ao fundo, uma plateia pronta para ouvir mais uma sessão de improvisação, rodeada pelos objectos mais insólitos que poderíamos pensar encontrar no espaço que alberga um concerto. Este ensemble portuense surgiu em 2009, a propósito do Serviço Educativo da Casa da Música, e conta com Pedro “Peixe” Cardoso na direcção artística. A par da particularidade deste espaço, temos também a da Orquestra. Uma Orquestra que é regida não por batutas, mas por punhos fechados de Peixe, acompanhados de dedos e mãos esticadas – tudo simbologias previamente combinadas com os músicos, de forma a criarem as suas composições sonoras. Nada se repete neste espetáculo, começando pelos diferentes modelos de instrumentos que estão à nossa frente. É a desordem no meio da ordem, com Peixe a guiar este conjunto de músicos, sem que nenhum se perca.
Olhando para trás, acho que minto quando digo que nada se repete neste espetáculo. A cara de felicidade e o sentimento de realização está presente em cada um dos rostos do ensemble. Foram setes anos de hiato, com os membros a dispersarem por esse país fora – como contou Pedro em entrevista à RUC. Abraçou esse distanciamento físico e adotou um concerto totalmente improvisado, sem qualquer peça previamente ensaiada. Concerto tocado em contínuo, as cordas e batidas levaram a plateia a ficar com um sorriso estampado na cara, impressionados pela coordenação entre estas 20 pessoas à nossa frente.
O Space Festival regressou no dia seguinte, 3 de novembro, para uma última leva de concertos na vila de Montemor-O-Velho, antes de descolar para Castelo de Paiva.