Les Siestes Coimbra 2024 – Do magnetismo à dança incansável
Coimbra contou com mais uma edição de Les Siestes, um evento que desde 2018 deixa a reverberar memórias do festival nos amantes da experimentação e da dança.
A edição de 2024 de Les Siestes Coimbra contou com 3 dias de viagem sónica pelo Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, com uma programação variada e exploratória de diferentes moldes da música experimental e de dança. A Rádio Universidade de Coimbra seguiu o festival com Lexi Narovatkin e Gonçalo Pina enquanto repórteres, e entrega agora um rescaldo e recordações de como foi tripartida a curadoria e produção de um dos eventos na dianteira da atividade cultural de Coimbra.
Dia 1: Despertar da onda sonora
A chegada ao mosteiro revelou uma nova disposição espacial que seria a base para os concertos do festival, era um palco artilhado no exterior com uma parede de 6 subwoofers, acompanhado da paisagem tardia e eventualmente de uma lua crescente. Com um ligeiro atraso começava o concerto de abertura com a dupla portuguesa Hidden Horse, acompanhada de Ana Farinha, percussionista do projeto Vaiapraia, que participa no formato live com João Kyron e Tony Watts. A banda começava o concerto com replicação de fonemas na língua russa por cima de um disco colocado pela terceira adição e prosseguia com a sua criação única que mistura percussão e linhas de sintetizador, tocando temas ainda por sair no repertório do grupo. A fusão entre o Krautrock, os discos escolhidos por Ana Farinha e os segmentos eletrónicos, consistiam no ato de abertura, que contava ainda com uma plateia por construir mas que já vinha ganhando forma, neste primeiro dia que contou com 700 entradas contabilizadas no espaço.
B4MBA acompanhado do seu DJ e produtor, MOOKI6, seria o segundo capítulo da tarde, o projeto que consiste na reinvenção de musicalidades da diáspora africana e latina, como afrobeat, dancehall e funk electrónico, com uma incisão de sonoridades industriais cantadas com o trap distinto de B4MBA. Ao longo do concerto, o artista apelava à aproximação do público e mesmo antes de tocar o tema de grime, Fazuzu, creditou Caucenus, artista local que produziu o mesmo com o cunho da portuense XXIII. A dupla apresentou temas ainda não lançados e as letras foram cantadas entre francês e catalão.
Para fechar a programação no exterior, subia a palco a DJ colombiana Bitter Babe, que fez aproveitar a parede de subwoofers com a sua mistura de dembow e bass music, foi uma sessão de dança incansável e de kicks sem interrupção, que levaria o público a consumir mais música electrónica de dança no segmento dedicado ao after, já no interior do mosteiro, num corredor que iria alojar até às 01h a perícia de Nick Craddock e a sua seleção que fundia temas clássicos e da nova geração de clubbing, um dos atos mais impressionantes nesta edição. Craddock mostrou confiança na mesa de mistura e prendeu a audiência do primeiro dia de festival.
Dia 2: Auge do fim-de-semana
A tarde de sábado tinha programada mais uma sessão de imersão sonora, a começar com XEXA, a esperada designer sonora que envolveu o público num véu delicado que passava pelo ambient e por formas de dancehall, aliadas aos seus arranjos vocais. Foi uma hora de música cristalina que mostrou a Coimbra a qualidade de programação do festival, que foca nas texturas experimentais e em proporcionar experiências únicas de estímulo sonoro. XEXA anuncia hoje a estreia do projeto Síncopes, uma série de “ficção sónica” de cinco episódios que se inspira em histórias reais de mulheres negras que viveram em Lisboa no início do século XX, e conta com a participação de Zia Soares e Cristina Roldão.
Sentia-se já a chegada de mais gente cativada por XEXA que com curiosidade se ia aproximando do palco que dava lugar a Talpah & Deepho, a atuação começava primeiramente com Talpah a assumir o papel de DJ até Deepho entrar em cadência de hip-hop italiano. Club desconstruído e vocais por vezes gritados, com as figuras turvas pela máquina de fumo em palco, surpreenderam realmente os repórteres da RUC. A dupla manteve uma atitude real e crua ao mostrar o seu colaborativo ‘NANNE’ (2023), um autêntico tormento que melhor poderá ser caracterizado como lacerante.
Foi através do bass potentíssimo que se ligava ao alinhamento o egípcio Assyouti, que conta como mais um dj set de luxo nesta programação. Yassine El Assyouti entregou uma autêntica gema, a sua técnica era intimidante e não deixava outra escolha aos corpos se não dançar, e depois da sua passagem por faixas de breakbeat, electro e jungle, o público exasperava para entrar no corredor do after.
Era Rita Maomenos que canalizava as pessoas ao longo do túnel, a DJ conseguiu um cruzamento de techno, electro, jungle e dubstep, por vezes com temas vertiginosos, e outros altamente energéticos. Foi outra grande surpresa, pela positiva, neste dia que a RUC considerou o mais forte em termos de curadoria.
Dia 3: Texturas regenerativas
As expectativas colocadas pela RUC em antevisão do evento, diziam que o domingo ia ser o dia de retorno à base, e foram todas cumpridas. O último dia do festival levou quem precisava, depois de dois andamentos carregados de intensidade, a encontrar um espaço de conforto, e sem dúvida regenerativo. O alinhamento pensado para este fecho envolveu o público numa manta de ritmos mais lentos e delicados, refletindo a essência do que muitos conhecem em Coimbra como Les Siestes.
Foi também neste dia que se observou uma dinâmica mais interessante entre público e artista, com o concerto de Radio Hito a acontecer com lugares guardados em almofadas em cima do palco, à volta de Nguyen Zen My, que numa apresentação intimista começava de costas num piano e ao passar para o segundo teclado, olhou para a margem oposta do Mondego e disse: “I can finally see the view“, deixando ainda mais temas, todos eles por saírem oficialmente, a pairar pelos espetadores que se reuniam à volta da artista.
Radio Hito já tinha acionado as respostas sensoriais de descontração e pairava uma sensação geral de calma, que iria ser ainda ser minerada a fundo por Carolf, que em duas horas explorou texturas ambient e dub, por vezes com vocais esporádicos. Levou membros do público a passar pelas brasas e as conversas que se escutavam na ambiência perfeita criada pela DJ lisboeta, faziam parte também do seu contínuo sonoro.
As caras dos dias anteriores cruzavam-se em grandes grupos mistos no pátio exterior do mosteiro e sentia-se quase uma familiaridade. E foi nestes conformes que era assistido o ato final a cargo de Naemi, artista que deixou cair uma suave junção de IDM e dream pop, acompanhada de guitarra elétrica e voz. Era assim que terminava o fim-de-semana e se fechava mais uma edição de Les Siestes Coimbra, um evento que desde 2018 deixa a reverberar memórias do festival nos amantes da experimentação e da dança.