Imagem principal
01.09.2023POR Maria Nolasco

A certeza da chuva de talentos – 30º Vodafone Paredes de Coura

São 30 anos a transformar a vila de Paredes de Coura na Vila do Rock. A Rádio Universidade de Coimbra rumou ao habitat natural da música para documentar estes quatro dias de sonoridades ecléticas.

É considerado por muitos casa, e até paraíso – ou Couraíso, como é carinhosamente apelidado. Há poucas coisas que são necessárias para este sítio idílico. Um livro, para as tardes de ronha; uma toalha, para as sestas infindáveis; e uma capa da chuva, para a precipitação que teima em aparecer todos os anos. Festival molhado, festival abençoado? Já lá vamos.

As margens da praia fluvial do Taboão prepararam-se para receber os festivaleiros, os que encontram ali o habitat natural da música. Por entre dias abrasadores, banhos de água gelada no rio, e noites que pedem um agasalho bem quente, os locutores da Rádio Universidade de Coimbra, Maria Nolasco e Miguel Duarte, rumaram à Vila do Rock para mais uma edição do Vodafone Paredes de Coura, de 16 a 19 de Agosto.

A libertação do rock e uma pista de dança

O cartaz desta 30° edição dividia opiniões. Se, para uns, faltaram os grandes nomes do rock que costumavam dominar os palcos, outros estavam entusiasmados pela diversidade do alinhamento. Contudo, o primeiro dia desta edição esteve repleta de nomes do espectro do rock. Dry Cleaning a inaugurar o palco principal, com o seu post-rock a gritar crise existencial. Yo La Tengo, um dos nomes mais aguardados da noite, mostraram como se mantém a relevância com o passar dos anos – mas entre as longas guitarradas, o concerto oscilou entre um certo aborrecimento e o culto. Frank Carter and the Ratlesnakes, levam o título de revelação da noite. E ainda Snail Mail no palco secundário que, após uma animada conversa com a RUC, subiu a palco e cumpriu a promessa que tinha feito na entrevista: trocar de guitarra em praticamente todas as músicas. 

Mas, em dia de rock, o anfiteatro natural virou pista de dança. E Jessie Ware é a causa da festa energética e colorida que teve lugar no palco principal. Ao longo de 50 minutos (tempo curto para a sofisticada britânica), não houve um momento de descanso. Vestida de prateado, parecia que vinha de outro mundo – e talvez tenha vindo mesmo, dúvidas legítimas depois da explosiva performance. Jessie Ware trouxe o disco e soul pop até ao Paredes de Coura. Pelo meio ainda houve tempo para uma versão de “Believe”, um dos hits de Cher, e que fez a plateia cantar em uníssono.

Fotografia: Hugo Lima

A pista de dança ficou aberta para receber Bicep, num Live Set, que, para além do ato musical, prendeu a atenção dos resistentes da noite com o espectáculo de luzes que viajava entre a colina e as árvores do recinto.

Y2K e a expectativa de um drop the mic

As energias foram recuperadas na relva da praia fluvial do Taboão. E nada melhor que estar deitado a ouvir os concertos do Jazz na Relva, com a portuguesa Raquel Martins e o seu jazz e neo-soul a ecoarem pelas margens do rio. A língua portuguesa continuou a soar pelo festival, com A Garota Não a abrir o palco secundário e Tim Bernardes o principal, num concerto intimista e que emanava amor, enchendo o anfiteatro natural – mesmo sendo um concerto de um homem só.

Entre concertos do palco principal, houve tempo para ir espreitar o palco secundário, na esperança de encontrar um concerto que fizesse o sangue fervilhar. E foi esse o caso do espetáculo de Sudan Archives, marcado pela sua irreverência e pelo violino vanguardista. 

Fotografia: Emanuel Canoilas

Se num palco a vanguarda foi rainha, no outro o recuo do tempo fez-se notar. Y2K tem sido tendência nos últimos dois anos, especialmente no mundo da moda. Os The Walkmen decidiram ajudar e levar-nos até aos anos 2000, já que o alinhamento do concerto foi em modo best of de temas dessa altura. 

Antes que a chuva chegasse, Loyle Carner segurou o trono de concerto da noite. Se tivesse de descrever o concerto do artista britânico, diria intimista e emotivo. Ao longo de uma hora, os ritmos da música de Carner afugentaram a chuva, para uma última noite de dança. E o poder lírico do artista também ficou cravado na  memória, intercalando com uma conversa aberta e honesta com a plateia. E para encerrar o seu concerto, Loyle Carner declamou um poema da sua autoria. Um verdadeiro momento drop the mic – e que teria oferecido a dose ideal de dramatismo para o final, só com o artista em palco e sem luzes.

Fotografia: Paulo Homem de Melo

Tempestade de talentos

Acordar com chuva de verão, numa tenda, pode parecer algo cinematográfico. Mas não é. Não quando não há grande espaço para as pessoas se abrigarem, os chuveiros de água gélida são a céu aberto, e há uma infinidade de concertos para se ver. Kokoroko foi a primeira paragem deste terceiro dia de festival, no palco principal. Apesar da chuva, a fusão de jazz e afrobeat do colectivo sediado em Londres, não deixou ninguém parado a apanhar chuva. Mais valia aproveitar e dançar. 

Não faltou pouco para chegar o concerto que marcaria a noite – pelo menos para esta repórter encharcada dos pés à cabeça. Domi & JD Beck surgiram logo de seguida, unindo de forma idílica o cenário construído em palco e o ambiente em volta. E não se deixem enganar pela sua tenra idade, que o talento e a inacreditável técnica estão lá. Sentada num banco-sanita, Domi Louna dominou o teclado com grande mestria, enquanto JD Beck não falhava uma única batida na sua bateria. O à vontade que a dupla sentia em palco era tanta que parecia que estavam numa jam session com um grupo de amigos – que na verdade era uma plateia cheia a ver o concerto. No momento em que descobri que Domi tinha 22 anos e JD Beck 19, Domi começa a tocar piano com a mão direita e a fazer linhas de baixo com a esquerda. Atrevo-me a dizer que os olhos estavam todos postos neste espetáculo, e bem arregalados. 

Fotografia: Eduardo Canoilas

A chuva começou a apertar, mas ainda faltavam vários concertos para que fosse aceitável ir procurar abrigo na tenda. Black midi também passaram pelo palco, com um concerto que só fazia esquecer a chuva se estivéssemos lá no meio, imersos nas batidas e guitarradas da banda inglesa. Little Simz fechou o palco principal, debaixo de uma chuva que teimava em não cessar. Um concerto que se traduziu em poder feminino. Esquecendo o desconforto das roupas molhadas, a rapper britânica levou o público a dançar e pular, noite adentro. Com uma presença hipnotizante, Little Simz foi a tempestade que queríamos nessa noite.

Depois da tempestade, veio o furacão

As roupas ainda encharcadas da noite anterior, o céu cinzento e um último dia de Vodafone Paredes de Coura para experienciar. Mas, quando Mr. Lee Fields subiu ao palco, a chuva começou a dar tréguas e o sol até se atreveu a espreitar. Lee Fields é uma força da natureza, e não deixou ninguém indiferente neste concerto. Se Little Simz tinha sido a tempestade da noite anterior, Lee Fields foi o furacão do Festival. Com 72 anos, subiu a um palco português pela primeira vez, com o seu soul repleto de amor e energia. O sorriso na cara dos espectadores era notório, partilhando da boa disposição de Lee Fields. É maravilhoso ver em palco artistas como este, a trazer o old school soul até esta plateia repleta de idades diversas. Porque sim, Paredes de Coura é também um encontro geracional. São os bebés com proteções enormes de ouvidos, os pais a carregarem-nos às cavalitas, os habitantes da Vila de Paredes de Coura, os jovens que vivem pela primeira vez o Couraíso e todos os outros que continuam a regressar. Último dia de festival a começar de forma arrebatadora, com um concerto que marcou esta edição. 

Fotografia: Rita Carmo

A boa disposição reinava nesta altura, com o sol a surgir e um fim de dia lindo neste anfiteatro natural. Yin Yin já subiam ao palco secundário, com o seu rock psicadélico a chamar os festivaleiros. Transportados pelo seu universo, algures situado entre Maastricht e o Sudoeste Asiático, a banda holandesa envolveu a paisagem verde de Paredes de Coura num concerto místico e bem ritmado. 

A noite caia e a neblina fria do rio Coura começava a subir. Já escuro, os Explosions In The Sky fizeram questão de nos iluminar, e de nos pôr a escutar. Os texanos continuam a provar que as palavras não são necessárias para nos fazer sentir a música de uma forma inexplicável. Havia um dilema entre fechar os olhos e interiorizar a música, ou estar de olhos bem abertos para ver o quadro que estava à nossa frente. Já com o final a aproximar-se, ainda se cantou com os experientes Wilco, dançou-se com a neozelandesa Lorde, e continuou-se a festa com Ascendant Vierge no palco secundário.

Fotografia: Emanuel Canoilas

 

É sempre difícil deixar o Paredes de Coura – também por se ter de levantar o acampamento debaixo de um sol abrasador. E porque é um festival que sabe a casa, num sítio que parece ter sido desenhado para este evento. Em 1993, quatro amigos sonharam em começar um festival nas margens do rio Coura. 30 anos depois continuamos cá, a encher a Vila do Rock com música e vida. Regressando à pergunta inicial: Festival molhado, festival abençoado? A resposta é simples. Claro que sim. Porque, se há coisa certa no Paredes de Coura é a chuva. E os concertos memoráveis.

PARTILHAR: