Amplifest 2022 – A diversidade como marca
O retorno do Amplifest foi absolutamente monumental, e a RUC esteve lá para o presenciar em primeira mão.
Ditam as regras que as crónicas e resenhas sobre os festivais e concertos sejam feitas quase in loco. Por vezes não é assim, é este o caso. Mas, cá vai este entendimento a duas mãos acerca do Amplifest 2022, que decorreu entre 7 e 9 e 13 e 15 de outubro. Seis dias em que o ecletismo da música mais “pesada” esteve presente num festival que tem mostrado ser muito mais que música. Tal como outros eventos, o Amplifest esteve também ausente durante dois anos e regressou em grande, logo em dois fins de semana, para marcar de forma sólida este retorno ao Hard Club. Antes ainda de irmos a música propriamente dita, convém referir que o Amplifest não se apresenta como um festival de concertos exclusivamente. A sua programação conta com filmes, conversas e concertos. Todos os dias do festival se iniciaram com uma sessão cinematográfica, no Beerfreaks Stage, e todos tiveram uma Amplitalk, acerca dos mais variados temas, relacionados com música, no restaurante do Hard Club. Quanto aos concertos propriamente ditos, foram mais de cinquenta e dotados todos eles de bastante intensidade. Será impossível falar de todos eles aqui, mas iremos fazer o nosso melhor para espelhar o que este festival urbano, mesmo perto da Ribeira do Porto, tem para oferecer.
Começando pela entrada, o público é presenteado logo com uma banquinha de cerveja artesanal, bem como outra com snacks. Mas a magia começa quando se inicia aquele pequeno grande percurso do hall do Hard Club, com banquinhas de distribuidoras de discos, quase tudo vinil, artistas gráficos com os seus quadros e tote bags, até uma banquinha com pedais que o público podia experimentar, com os seus mil efeitos. Por fim, a banca do merchandising das bandas que atuaram no Amplifest, a merecer um lugar de destaque. Num ambiente que respirava tranquilidade, era esta a entrada que nos ofereciam e a música ainda nem tinha começado.
FDS 1 – Dia 1
Passando a música propriamente dita e aos concertos que passaram pelos palcos do Amplifest, a abertura do mesmo foi com uma surpresa. A.A. Williams, vinda de Londres para apresentar o seu mais recente trabalho, As The Moon Rests, introspectivo, auto reflexivo. E foi assim mesmo o seu concerto numa atmosfera de bastante serenidade que o Amplifest abriu as suas portas. Não perdendo o mote lançado por A.A. Williams, seguimos Jo Quail até ao Beerfreaks Stage. Violoncelista também de Londres, que nos transportou para outra dimensão pela forma como os loops e os graves se foram adensando à medida que o concerto ia avançando, deixando o público numa espécie de catarse libertadora, o que foi uma constante durante todo o festival.
De seguida o primeiro tremor de terra desta edição do Amplifest. Os Process of Guilt apresentaram Slaves Beneath the Sun, no ano em que celebram 20 anos de carreira, ainda que, em conversa com a Rádio Universidade de Coimbra, tenham referido que não pensaram neste trabalho para comemorar a data. Um concerto explosivo que fez tremer o chão do Bürostage com muita intensidade. Um espetáculo da banda de Évora que prova que a música pesada portuguesa tem bastante qualidade e está bastante bem cimentada no panorama nacional. Também explosivo, mas com momentos de bastante intimidade foi o concerto de Vile Creature, num ano difícil para a banda, com o falecimento da locutora que os levou à rádio e acreditou no projeto, algo bastante vincado pela banda. A tudo isto, acrescentar também os problemas de saúde de Kyle William Campol, que foi alvo de uma cirurgia este ano. Nenhuma destas coisas abalou aquele concerto poderoso, com uma performance bastante bem conseguida e, sem dúvida, um dos melhores do dia de abertura do Amplifest.
Seguiu-se um momento que havia gerado alguma expectativa entre o público do Amplifest. O concerto de Amenra foi um acústico, também devido a problemas de saúde do baixista Tim de Gieter, que foi operado, o que levou a uma mudança no formato do concerto. Com uma tradição de grande intensidade nos seus espetáculos, algo que Colin H. van Eeckhout confessou a RUC ser cada vez mais difícil devido ao facto de já não serem jovens com 20 anos, este momento foi isso mesmo. Um momento de intensidade e intimidade com o público que fez com que toda a gente presente no Bürostage fosse apenas uma pessoa. Houve também uma surpresa por parte dos Amenra ao tocarem uma versão para Parabola de Tool.
Mantendo a toada de Amenra, mas a solo e numa onda entre o shoegaze e uma melancolia que nos transportou para o mundo de Midwife, Madeline Johnston, assoberbado por uma espécie de metal paradisíaco.
Como a curadoria musical do Amplifest não para de nos surpreender, tivemos Dälek , que desde 1998 produz hip hop experimental e deu outro encanto ao festival portuense, que viu o seu primeiro dia encerrar com Prison Religion.
FDS 1 – Dia 2
Chegados ao segundo dia do primeiro, as hostilidades foram abertas por Pallbearer, que vieram diretamente de Arkansas para nos trazerem um doom, com vozes que nos soam ao passado, mas um instrumental que nos recorda que são um projeto do presente. Claramente Brett Campbell é, provavelmente, um fã incondicinal de Black Sabbath e da voz de Ozzy Osbourne. Visivelmente felizes pelo regresso aos palcos, Brett Campbell confessou ao público “madrugador” do Amplifest que não tinha a certeza de que a banda fosse tocar ao vivo novamente.
Logo de seguida deram entrada no Beerfreaks Stage os ingleses Telepathy, com o seu sludge atmosférico, preparando o caminho para aquele que foi talvez o concerto mais divertido de todo o primeiro fim de semana de Amplifest. Falo-vos de Elder, com um concerto super sólido e alegre.
Posto isto, a brutalidade de Irist invadiu as nossas almas e serviu para expurgar todos os males acumulados ao longo do ano. Com uma sala onde era praticamente impossível fazer entrar mais uma pessoa, a atmosfera post metal agarrada a uma grande agressividade, fez com que Irist fosse uma das surpresas bastante positivas desta edição do Amplifest.
Da mesma forma, ainda que numa onda musical bastante diferente, Brutus foram talvez quem mais interagiu com o público. Com um excelente espetáculo, a energia Stefanie Mannaerts foi quanto bastou para que este fosse um dos concertos a ficar na retina dos espectadores. Outro aspecto bastante positivo do Amplifest, é que a cada concerto somos agraciados com uma experiência diferente, tornando-se extremamente difícil avaliar as atuações. Uma coisa é certa. Esta diversidade que se fez sentir só pode ser boa e algo que abra a porta a cada vez mais artistas com propostas musicais diferentes.
E o caso de O Gajo, ou João Morais, que para além da sua sala e da viola campaniça, trouxe bastantes convidados apesar de atuar a solo. Aqui fomos abraçados por uma experiência intimista que tivemos oportunidade de esmiuçar numa conversa.
Sendo agora um pouco suspeito, Oranssi Pazuzu é talvez o projeto mais inovador que passou por esta edição do Amplifest. Com um industrial, black metal, psicadélico, o seu concerto e sonoridade parecem transportar-nos para um labirinto do qual se torna impossível sair, causando uma certa sensação de agonia e até ansiedade. Uma performance capaz de nos transmitir tudo isso.
Para acalmar tudo isto Fotocrime apresentou um concerto sólido, mas desprovido de grandes surpresas, ao passo que Putan Club desafiou as barreiras num concerto em que o palco foi no meio do público. Um jogo do gato e do rato que esgotou as energias deste segundo de Amplifest.
FSD 1 – Dia 3
Eis que ao terceiro e último dia do primeiro fim de semana de Amplifest fomos “acordados” logo no primeiro concerto pelos americanos Wolves In The Throne Room, que regressaram ao nosso país passados 10 anos, eles que com o seu Black Metal “incendiaram” o Bürostage a abrir para o dia em que todas as energias se poderiam gastar, pois a continuação do festival só aconteceria dali a quatro dias.
Logo de seguida, o show perfeito do improviso de Clothilde, que com os seus materiais construídos para ela, transportou o público para uma atmosfera diferenciadora. A RUC esteve breves momentos a conversar com Sofia Mestre.
Para quem ainda vivenciava o éter transmitido por Clothilde, a chapada de Birds In Row não podia ser mais agressiva. Apesar de não ser habitual o tradicional moche no Amplifest, lá se viu neste espetáculo conduzido pelos franceses alguns corpos a abanarem ao ritmo alucinante deste hardcore francês, a dar provas de que o género não está nada datado. Assim, foi aqui que o crowdsurf mostrou a sua cara a primeira vez quando a noite já ameaçava chegar.
Nem um pequeno descanso e já o recente coletivo espanhol Tenue estava a gritar-nos a altos pulmões aos ouvidos, a demonstrarem que são um projeto que consegue fundir géneros desde o post-rock a um certo crust, certamente um projeto ao qual devemos prestar atenção nos próximos anos e uma das boas novidades deste Amplifest.
Já sobre Caspian, foi mais um daqueles concertos em que se parecia assistir a uma peregrinação. Era daqueles momentos que ninguém queria perder, e bem. Com quase 20 anos de carreira, desde 2016 que deviam mais um concerto ao público portugues, e que concerto. Um momento de simbiose entre a banda e o público fazendo crer que mais nada estava a acontecer no mundo a não ser aquele momento.
Tivemos depois Patrick Walker, ou 40 Watt Sun, artista britânico que atua a solo ou em colaborações depois de ter abandonado Warning e serviu para acalmar os ânimos antes de Cult Of Luna subirem ao Bürostage com uma brutalidade e intensidade de concerto que nos presenteou com Long Road North, trabalho lançado este ano e que os fãs já conhecem bem. Cult Of Luna que também foram os protagonistas da Amplitalk do dia sob o mote Cult Of Luna: Somewhere Along The Road.
FDS 2
A caminho do segundo fim de semana do Amplifest, na sua edição de 2022, o coração batia de ansiedade. Para quem nunca partilhou o Hard Club com os restantes atendentes do festival, será difícil de explicar a sensação – foram uns anos sem um dos festivais que era, para os fãs dos colossos sonoros que usualmente povoam os cartazes do festival, dos mais esperados do ano inteiro. A ânsia por retornar àquelas salas, de voltar a ver velhos amigos, e de voltar a experienciar a intensidade dos amplificadores povoou o peito de quem fazia caminho das suas casas para a Praça do Infante D. Henrique, no Porto.
Olhando para o cartaz, o segundo fim de semana esteve pleno de bandas que seriam um must, bandas que foram uma surpresa de as ver por lá, e um concerto surpresa muito especial, que de certo ficou na memória de quem o viu.
FDS 2 – Dia 1
A chegada ao Hard Club foi mais cedo do que se pedia, mas foi por amor que se fez esse pequeno sacrifício. Primeiro, porque já tinham passados anos que muitos de nós não punham lá os pés, e também porque há sempre caras amigas na organização, e rever essas pessoas era imperativo. Mas não demorou muito até os concertos começarem. No Bürostage viu-se, pela primeira vez em Portugal, a banda norte-americana Shy, Low, e que ótima maneira de abrir o festival. O flavor de pós-metal misturados com as texturas ambientais que criaram durante aquela hora de concerto foi uma ótima surpresa. A humildade da banda em se apresentar ao público foi também muito familiar, um sentimento que se partilha muito pelos atos todos que passam pelo festival. Shy, Low apresentou o álbum Snake Behind the Sun na íntegra, desde a primeira faixa até à última, e dando destaque a Decease Spe Re, a última faixa que tocaram, que foi uma explosão de energia criada pelo set todo. Quem já não era fã da banda de Richmond, Virginia, de certeza que correu para ouvir mais do trabalho deles.
Depois deste aquecimento para o resto do dia, passaram-se umas horas a ver as bancadas de discos e merchandise que estavam pelo corredor do Hard Club, e ouvia-se muito bem Luís Fernandes a tocar no Beerfreaks Stage. Entre toda a vida do festival, foi também uma ótima abertura desse stage em específico, que se zelou pela experimentalidade durante esses dias. Luís Fernandes já não é novato nem na cena da música experimental portuguesa, nem no Amplifest – e o pelo público e pela eletricidade sonora, notou-se completamente a mestria sonora que ele aplica no seu trabalho.
De volta ao Bürostage, Cave In deram um concerto completamente impressionante. O carisma da banda entrelaçada com a marcha impiedosa fizeram como que se o concerto fosse curto demais, que era preciso mais daquela energia. E com um álbum novinho em folha, Heavy Pendulum, que quem o ouviu sabia muito bem que o mesmo pedia para ser sentido ao vivo. Para além disso, tivemos direito também a throwbacks à discografia dos mesmos, com destaque puro para Big Riff e Sing My Loves, que foram cantados a peito cheio pelo público. Logo a seguir Caspar Brötzmann Bass Totem foi um deleite que para quem é baixista e para quem gosta de ver alguém a ter completo controle sobre um instrumento, fazendo dele quase uma extensão direta do seu próprio corpo.
Mas após uma pequena pausa para reter energias, preparava-se os ouvidos para um dos concertos que, ouvindo por alto algumas conversas de quem estava presente, era dos mais antecipados. A simplicidade da composição do palco onde Aaron Turner e os seus companheiros se manifestaram com o seu som altíssimo deram-nos um dos concertos mais intensos dos últimos tempos. Com o destaque para os vinte minutos de The Task e para o crescendo imparável de Consumed, foi uma hora de mestria sonora que tal como o concerto de Cave In, pediu para ser mais um par de horas. Após o concerto, falava-se muito do quão bom é estar vivo numa altura onde se pode presenciar bandas como SUMAC ao vivo.
No entanto, haveria outro concerto também amplamente esperado por todos os que se encontravam entre as salas do Hard Club – e eles já são da casa. Deafheaven proporcionou no passado alguns dos melhores concertos que se viu por aquele espaço, então era natural que as expectativas fossem altas. Até porque o novo trabalho dos mesmos, Infinite Granite, mostrou uma outra faceta da banda – a sua capacidade de criar ambientes de shoegaze sem a necessidade dos blastbeats, e eles não serem menos intensos. E na verdade, a banda é tão coesa e os instrumentais tão bem performados que para quem não conhece o trabalho dos americanos Deafheaven pensaria que eram uma banda de shoegaze. De facto, é nesta conjuntura eclética de sons que Deafheaven se demonstra como uma das bandas mais relevantes dos últimos tempos, ainda que os vocais limpos de George Clarke não tenham sido o que se estava à espera. Ainda assim o concerto foi ótimo, e o retorno a New Bermuda e Sunbather foi uma ótima maneira de fechar o Bürostage para esse dia.
Com este dia preenchido, falava-se fora do Hard Club, entre cigarros e cervejas, do que se podia esperar do dia seguinte. Para nós, da Rádio Universidade de Coimbra, havia uns nomes imperdíveis, e outros com um interesse enorme em presenciar. Deram-se os adeus e o descanso devido brevemente chegou, para poder aproveitar os dias que se avizinhavam.
FDS 2 – Dia 2
BRUIT ≤ vieram das suas terras francesas para se estrearem nos palcos do Amplifest, munidos da sua composição musical que variava entre os sintetizadores e as cordas, com uma incrível mistura entre o pós-rock e as novas vanguardas da música clássica, e foram umas das melhores surpresas do festival. Olhando à volta do público, via-se quem estava desde completamente surpreendido até à pessoa que limpava as lágrimas de emoção por ter presenciado o “barulho” (em francês, literalmente, Bruit) que os franceses trouxeram ao Bürostage. The Machine Is Burning And Now Everyone Knows It Could Happen Again, o seu último trabalho, foi tocado praticamente na íntegra, e a comoção do público traduziu-se também nos membros da banda, que agradeceram com um carinho imenso a presença do público e o facto de terem tocado no Amplifest. Definitivamente uma das bandas a acompanhar durante os tempos que se avizinham, e uma recomendação facílima para quem partilha este gosto pela música instrumental. De certeza que nos voltarão a dar o ar da sua graça brevemente.
Saídos da sala, continuava-se a ouvir pelo ar os rumores sobre quem seria o concerto surpresa. Aliás, para muitos já não era surpresa, dado que as pistas estavam em todo o lado – desde o enorme banner que celebrava o aniversário da Amplificasom, até aos membros da banda que caminhavam pelo Hard Club – enquanto Tashi Dorji estava no Beerfreaks Stage. Um concerto eclético cheio de paisagens sonoras que se misturavam etereamente pela escuridão da sala.
Mas enquanto isso, imensa gente enchia o Bürostage para a confirmação de quem seria o concerto surpresa do segundo fim de semana do Amplifest, e rapidamente se confirmou assim que Ravenna Hunt-Hendrix e os restantes membros de Liturgy entraram palco adentro. Na verdade, já havia rumores deste concerto ser uma possibilidade, dado que Liturgy estava naquele momento a finalizar uma tour europeia com Lingua Ignota, que também estaria no festival. Dizer que o concerto foi bom é dizer, de facto, muito pouco sobre o que se presenciou. Liturgy trouxe temas do seu aclamado trabalho H.A.Q.Q., de 2019, relembrou-nos temas do Aesthetica que os explodiu para o resto do mundo, e ainda tocaram uma música que pertence ao próximo trabalho ainda por sair. A energia colossal da mistura do art rock com black metal, mesmo com a simplicidade do palco, foi absolutamente delirante, tanto que após o concerto a correria para a mesa do merchandise foi incrível de se ver. Apesar de não se ter ouvido faixas como GOD OF LOVE e Returner, a setlist não se ficou atrás, e a esperança em retornar a ver o quarteto no futuro mantém-se, e aguarda-se com muita antecipação o seu próximo trabalho.
Após Liturgy, William Fowler Collins e os portugueses Indignu preencheram as horas seguintes do festival. Destaque principal para os Indignu que tocaram na íntegra o seu trabalho adeus, que é um must para os fãs de pós-rock feito em terras lusitanas. Conversava-se com amigos sobre como estes concertos ajudavam a guardar as energias para os que se aproximavam – uma noite absolutamente intensa com alguns dos actos mais esperados do festival.
Ainda dentro do que Liturgy fez no Bürostage aguardava-se por Spectral Wound. O mar de camisolas da banda canadiana de Black Metal era impossível de ignorar, tanto que o Beerfreaks Stage encheu rapidamente. Foram cerca de 50 minutos imparáveis de puro Black Metal a correr pela sala, tendo a setlist cheia de “malhas” do último trabalho, A Diabolic Thirst, sem tempo sequer para respirar. Já se sentia falta de concertos assim.
De seguida, para contrastar os tons mais tenebrosos dos últimos concertos que se presenciaram, a correria para o Bürostage voltou a suceder – desta vez para (re)ver Anna von Hausswolff, que já não é de todo nova nas andanças do Amplifest, e até já nos trouxe o seu trabalho aqui em Coimbra, em 2018. Desta vez munida de All Thoughts Fly, trabalho lançado em 2020, Anna deu-nos uma incrível performance ritualística que facilmente rendeu todos os que estiveram presentes nela. Até com a performance do Liturgy of Light, enquanto caminhava pelo público, muitos foram os sortudos que chegaram a dar-lhe a mão enquanto cantava. É de salientar também os ritmos de eletrónica, o trabalho de teclas e o espetáculo de luz que aconteceu durante essa hora e pouco de concerto. Tivemos ainda direito a The Mysterious Vanishing of Electra para terminar o concerto, e quem esteve atento às setlists da tour da artista, a surpresa de Gösta como encore não foi nenhuma – mas não menos celebrada. Em geral, pelo que se conversava com amigos e do que se ouvia dos outros atendentes do Amplifest, Anna von Hausswolff foi um dos highlights do festival.
Os próximos dois concertos foram também um climax enorme de todas as energias deste segundo dia do segundo fim de semana do Amplifest. Em tons jocosos falava-se no quão criminoso (no bom sentido) era ter Hellripper e logo de seguida Bongripper – dois lados, se calhar, da mesma moeda. O que se viu no Beerfreaks Stage durante o concerto da banda escocesa foi um autêntico caos. Atenção, diz-se isto na melhor das intenções – Hellripper, de James McBain trouxe, durante o seu set, um autêntico idol worship ao Black e Speed Metal, preenchido com os seu trabalho The Affair of the Poisons e outras reminiscências aos seus trabalhos anteriores. Já Bongripper, a banda de Doom vinda de Chicago, veio fazer o seu Satan Worshipping Doom no Bürostage. Uma hora de concerto não chegou para 5 músicas, e mesmo assim bastou para a celebração de uma das bandas mais fulcrais do género. Cada vez que o baixo era tocado sentia-se a onda das frequências a vibrar os ossos de quem estava presente. Dito isto, foram duas horas seguidas de headbanging e celebração dos vários extremos da música, e foram duas horas mesmo muito bem passadas.
Fora do Hard Club, falava-se do quão agressivo o concerto de Hellripper tinha sido, ainda se sonhava com o concerto de Anna von Hausswolff e Liturgy, e havia risos quando se via o alinhamento do terceiro e último dia deste segundo fim de semana do Amplifest. O cansaço também imperava, e estaria na altura de dar tempo para o descanso para finalizar o festival da melhor forma.
FDS 2 – Dia 3
Dizer que o primeiro concerto deste alinhamento do terceiro dia era dos mais antecipados do festival é, efetivamente, quase falar pouco. Quando este nome em específico foi anunciado ouviu-se palmas pelo país fora, tanto é a adoração pelo trabalho de Kristin Hayter enquanto Lingua Ignota. Já se esperava este concerto desde o lançamento de Caligula, em 2019, e até antes – e dado os últimos acontecimentos infelizes na vida da artista que nos trouxeram Sinner Get Ready só fazia sentido poder celebrar-la em concerto, ainda mais sendo a sua estreia não só no Amplifest, mas também em Portugal. Uma setlist que preencheu os últimos dois trabalhos, um trabalho visual e performático, uma autêntica missa que foi presenciada do Bürostage a essa hora de Sábado. Difícil foi conter as lágrimas e o batimento cardíaco durante I Who Bend The Tall Grasses, The Solitary Brethren of Ephrata e Pennsylvania Furnace. A voz e a maneira como Kristin se movimentava pelo palco e pelo público foi mágico. Se houve um concerto que foi verdadeiramente o ponto alto deste segundo fim de semana, foi este. Foi importantíssimo. Aguarda-se os seguintes trabalhos de Hayter com muita antecipação, e guardou-se este concerto na memória com muito carinho.
De seguida, no Beerfreaks Stage, tivemos a oportunidade de presenciar Bossk, que nos deram uma viagem pela sua discografia, desde .2 ao seu último trabalho, Migration, de 2021. A atmosfera que os britânicos criaram na sua performance foi a perfeita transição desde o concerto anterior. Completamente energizante, o seu som ecoava pelo Hard Club, e muitos curiosos foram-se juntando para o presenciar. Após Bossk, tivemos ainda o prazer de ver Peter Broderick e as suas composições, que encheram uma hora de fantásticas paisagens sonoras e Aaron Turner, que já tinha estado em palco com SUMAC anteriormente, mas desta vez a solo a mostrar não só a sua mestria enquanto guitarrista, mas enquanto sonoplasta também. Estes dois concertos, entre o Bürostage e o Beerfreaks Stage, quase que comunicavam entre setlists, no sentido em que o experimentalismo e a experiência instrumental de ambos os artistas complimentavam-se dentro do alinhamento desse dia. Fazia todo o sentido, é o que se pretende entender.
Um dos concertos mais antecipados também do festival seria a presença dos japoneses Envy. Para quem conhece a história do pós-hardcore pelo mundo, é impensável que não se considere a importante contribuição para o género que os nipónicos fizeram e fazem desde os anos 90. E na sua performance não ficaram atrás do título de “lendas” que lhes é dado com todo o devido mérito. Tocaram tudo desde os trabalhos mais recentes, faixas de trabalhos futuros, mas foi com Dawn and Gaze e Farewell to Words que o concerto explodiu, com as paisagens de spoken word em japonês e os instrumentais belíssimos, cheios de esperança, que saíram daqueles amplificadores.
Após o concerto de Envy, guardavam-se as energias para o concerto que se avizinhava. Quando se vê este nome num cartaz sabe-se logo, de memória, que se tem de ir bem preparado, de ouvidos atentos e coração aberto – não existe outra maneira de presenciar Godspeed You! Black Emperor. Aliás, há poucas maneiras de descrever estas duas horas de concerto. Desde o trabalho cinematográfico que vinha da regie, onde a mudança de bobines de fita cinematográfica misturava-se com o trabalho instrumental da banda (que vinha munido de vários temas do seu último trabalho, G_d’s Pee AT STATES END), de maneira a que essas duas horas não fossem só um concerto – mas também uma experiência artística que transcendia canones clássicos. E foi com uma ótima surpresa que ainda se ouviu The Sad Mafioso de F♯ A♯ ∞ e World Police & Friendly Fire de Lift Yr Skinny Fists Like Antennas to Heaven!, mostrando não só que esse não está esquecido, e que é toda a obra de Godspeed You! Black Emperor que deve ser celebrada. Foram duas horas no Bürostage, que para muitos foram as últimas duas horas do festival, mas para nós não podia ser – aliás, havia mais uma banda que era imperdível.
Uma das coisas mais bonitas que se vê sempre pelo Amplifest é o cuidado ao trazer música portuguesa para os palcos do Hard Club. Neste fim de semana vimos com muito carinho Luís Fernandes, Indignu… e por último concerto que vimos no festival tivemos Scuru Fitchádu, amigos da Rádio Universidade de Coimbra, que deram um show incrível ao qual já são muito bem conhecidos e falados não só pela cena portuguesa mas também mundial. Foi em ótimo tom que demos por finalizado a nossa experiência no Amplifest – a ver amigos, com amigos, em celebração da música de todos os espectros do extremo e experimental.
Para terminar, é importante também falar da diversidade social que o cartaz do festival trouxe aos palcos. Seja ela sexual, de género, racial, étnica – é pela música que durante estes dois fins de semana se encontram pontos comuns de celebração e comunidade, e só quem esteve por lá sabe o quão esta consciência política, muitas vezes inseparável da arte, se materializou e se fez viver. Por aqui ficam votos, como todos os anos, de retornar lá passado esses meses todos.