Além-muros, a coexistência – é dela a música, veículo universal | Crónica sobre o Festival MED 2022
Num tempo em que os muros erguidos aparentam vencer os que se deitam abaixo, talvez seja pela música que se reverte o cenário, se afrouxa o mal, se recrudesce o que há de belo, ainda. A prová-lo, eis aquele que é um dos festivais onde a tónica está na coexistência de expressões musicais endógenas a várias pontas do globo, na sua conciliação, no entrelaçar de povos e culturas – metáfora para tanta coisa onde devia recair a coexistência, a harmonia pela diferença; cada território um corpo, cada corpo um ritmo, e todos eles, tão distintos, em simultâneo.
Falamos do Festival MED, em Loulé, que, volvidos um ano de paragem (2020) e uma edição adaptada à pandemia (interMEDio, 2021), regressou este ano, de 30 de Junho a 3 de Julho. Um festival que vem romper o estigma de ser só de sol e mar que se faz o Algarve, que é dele, mas também do mundo; que começou por andar à volta da Bacia do Mediterrâneo – zona onde recaía a pesquisa de nomes a trazer a palco, mas que, pouco a pouco, veio abraçando outros territórios. Este ano, a celebrar a sua 18ª edição, foram 23 as nacionalidades neste encontro representadas, sendo a Mauritânia uma estreia protagonizada pela artista Noura Mint Symali. São elas que estão por detrás dos “quatro dias de festival, 90 horas de música, 66 concertos e 12 palcos; mais de 330 músicos”, uma síntese que se escuta do vereador da Câmara Municipal de Loulé, Carlos Carmo, a quem coube a apresentação do cartaz, no início de Maio.
Foram mais de trinta concertos espalhados pela zona histórica de Loulé, o que põe a essência deste festival para lá da música – ou não resultasse desta proximidade uma entropia com o que de artístico, cultural e social existe para oferecer nesta cidade algarvia, e que as mais de 100 bancas semeadas pelas ruas não deixam enganar. E se, por um lado, a sobreposição de alguns minutos entre concertos nos obriga a optar, paradoxalmente, é precisamente nos momentos de transição de palco, nessa itinerância quase nómada pelas ruelas calcetadas, pracetas e jardins, que, sem aviso, pode acontecer estarmos diante de um espetáculo de fogo, malabarismo, performance, grupo de coral feminino, de capoeira, de fanfarra cigana, de dança venezuelana, de flamenco ou de Cante. Rhakatta, Danzas Venezolanas Araguaney, Al-Fanfare, e, no Cante, Estevas em Flor, Vozes da Aldeia e Amigos do Rosário – eis alguns dos grupos que personificaram esta ‘animação de rua’, a qual (não obstante o aperto dos corpos entre ruas, que se deu sobretudo no Sábado, dia de maior afluência) é um dos aspetos que tornam o Festival MED tão especial.
Suspensão, ‘atrito e afeto’ – 1.ª noite, 30 de Junho
Haverá quem aguente a condição terrena como absoluta? Quem tenha os pés como único apoio ao caminhar? Quando eles já pesam, se cansam de carregar este corpo, como prosseguir? Talvez seja aí que entra a suspensão, a procura de outros modos de estar, pisar. Venha depois a fuga por uma transcendência que faça superar ou, pelo menos, amortecer a condição terrena. Por mais que breve e efémera, por mais que traga em si a consciência de haver que descer. Não é da ilusão o colmatar do entediante? Passarolas, a de Bartolomeu Gusmão e depois de António Gedeão, e outras: aviões; teleféricos e demais objetos que nos aproximam desse movimento aerodinâmico que a inaptidão do corpo impede – valha-nos a metafísica, a poesia, a música, o que nos encanta, e decerto renunciaremos a essas e semelhantes mecânicas, confundindo gravidades, ideias de altitude, movimentos de ascendência.
Quando se chega a um festival e há músicos que tocam suspensos (trata-se do grupo “Música Suspensa”), embalados por essa força que é a ilusão, estas e outras sensações chamam-nos, como se prenúncio de algo levitante ou menos terreno que nos esperasse do lado de lá, transformando o inicial estado de pasmo num frenesim por entrar. Cedemos: a abertura do Festival dá-se pelas 20h30, no Palco Chafariz, com Plasticine – grupo radicado no Algarve, feito de uma fusão de influências que vão do rock ao jazz, roçando o funk. O próprio termo que escolheram para nomear o projeto dá desde logo indícios desta maleabilidade sonora, bem como da mutabilidade em palco – ou não fosse a composição do grupo marcada pela rotatividade dos músicos que o constituem. Em Plasticine, há uma confluência de velocidades que nos agarra, tecida por temas longos, essencialmente instrumentais, com espaço para a acalmia e contemplação em temas como Magreb, e para aquele que diria ser o tema antitético – Tunataka Amani, cuja eletricidade foi capaz de puxar alguns dos que se haviam sentado na relva que distingue o Palco Chafariz dos demais. Um concerto feito em casa, o que tão bem se traduziu no clima de cumplicidade entre músicos e público, e um regresso a Loulé particularmente especial para a banda, dado que foi esta a cidade escolhida para apresentar o homónimo álbum de estreia, em 2019.
Deixando Plasticine para trás e rumando a Criatura, espreita-se o Palco Castelo pelo caminho. Pela sua dimensão e composição – cadeiras ladeadas de gente em pé, dir-se-ia terem sido os concertos aqui realizados os mais intimistas, sossego talvez necessário ao abrandamento do ritmo saltitante entre palcos. Nesta primeira noite, deu-se neste palco a atuação de Noiserv, projeto a solo de David Santos, dos You Can’t Win, Charlie Brown, e que desde “One Hundred Miles From Thoughtlessness”, álbum de estreia, 2008, nos habituara a um efeito sinestésico, pelo menos atmosférico, conseguido pelas paisagens melódicas (cinematográficas?) que sozinho cria, girando as mãos entre a guitarra, o teclado e a percussão. Um conjunto de sensações que resvala para o último álbum, “Uma Palavra Começada por N”, lançado em 2020.
Finalmente em Criatura, poderíamos falar da irreverência e da sátira pela música – e sim, fala-se “Da Praxe” como “arte de imitação”; do “pão que está caro, quanto mais a fome” (Bem Bonda); da “tanta gente sem casa, tanta casa sem gente”; da abolição do direito ao aborto nos Estados Unidos em que reflete Edgar; um bradar aflitivo que vem dele e é, em uníssono, de todos nós. Poderíamos falar do diálogo entre a tradição e a modernidade – e sim, há algures uma gaita de foles, um adufe, um cajado, alguns chocalhos e demais indumentária muito garrida, que nos transporta para um povoado rural, para um passado que fica próximo (e que é presente, ainda); falar do resgate da ancestralidade linguística, musical e simbólica, de gentes e lugares, construído a partir de uma vivência popular do território. Mas… algo há nos Criatura que aproxima tudo isso de pormenores; que os põe para lá deles: um badalo que toca os recessos do Ser, por lá fica e repercute, age, ressoa; uma decorrente comoção; algo análogo a um cateter que nos escadraça a consciência e o sentir das coisas: talvez o elogio ao belo que há no mundano – nas figuras que compõem um imaginário social que é nosso, que nos dá sentido e pertença a um quotidiano que é fissurado quando essas figuras já não estão, e que aqui se faz pelo “Padeiro que já não vem no Natal” (O Padeiro – Parte 1 e O Padeiro – Parte 2). Uma ausência de figuras outrora nossas e que tem foz numa melancolia que paira sobre os lugares, tal como se fala em Lobbysómem. E depois a empatia, que é aqui múltipla: entre nós, que vibramos do lado de cá do palco; entre nós e esta banda, e entre os que a constituem (Edgar Valente na voz, piano e adufe; Gil Dionísio na voz e violino; Cláudio Gomes no trompete; Alexandre Bernardo no bandolim, cavaquinho e guitarra acústica; Acácio Barbosa na guitarra portuguesa; Fábio Cantinho na bateria; Iúri Oliveira nas percussões e Mbira; João Aguiar na guitarra elétrica; Ricardo Coelho na gaita de foles, ocarina, flauta transversal e palheta e Paulo Lourenço no baixo elétrico) – qualquer coisa de místico, conjunto de pequenas subtilezas endógenas a essa empatia que torna difícil o afastamento – do palco e desta Criatura; uma urgência em escutar uma e outra vez, uma relação talvez de “atrito e afeto”, como dita um dos versos de Bem Bonda.
E se em Criatura “O Encanto” se deu com o violino que enceta esse tema e resvala para os demais, perto das 22h30, como se de um íman se tratasse, há um ardine (espécie de harpa tradicional da Mauritânia, com nove cordas e apenas tocada por mulheres) que nos suga para o Palco Matriz. Trata-se de Noura Mint Seymali – “griot” (nome atribuído nesta zona de África a uma mulher responsável pela transmissão de cultura por via da declamação, da música e outras expressões orais) ao lado da qual está o companheiro Jeich Ould Chhighaly na guitarra, Ousmane Touré no baixo e Matthew Tinari nas percussões. Um espetáculo quase hipnotizante pelos efeitos psicadélicos, e que nos fala da tradição como palimpsesto; do reescrever dos tempos sem gastar os anteriores – sem deixar que esses sejam entrave ao reescrever; ao escrever por cima do que está.
Perto das 22h15, é no Palco Matriz que encontramos Re: Imaginar Banda Monte Cara, grupo cabo-verdiano que pelo nome presta homenagem ao primeiro espaço cultural dedicado à cultura do seu país, em Portugal – o Monte Cara, fundado em 1976 e por onde passaram, nessa década e depois, artistas como Cesária Évora, Paulino Vieira, Celina Pereira, Tito Paris, Vitorino Salomé e Rui Veloso – o qual colaborou, inclusive, no tema Curpim Sap, que integra o EP homónimo, juntamente com Leonel Almeida. Neste, lançado este ano, encontramos ainda as vozes de Dino d’Santiago e Dany Silva.
Afagado por uma temperatura que parece ter vindo para ficar, o posterior convite à dança fez-se no Palco Cerca, ao som de Gyedu-Blay & His Sekondi Band, do Gana. Já lá vão 75 anos de música e 30 álbuns lançados desde que Gyedu-Blay se fez ao saxofone, à composição e à produção. Logo nos anos 60, co-fundou a Uhuru Dance Band, e, quando chega a década 70, torna-se um dos primeiros músicos a incluir nas suas composições o rap, então recém-surgido nos Estados Unidos, e que o tema Simigwa-Do, editado em 1973 e reeditado pela britância Soundway Records, tão bem o protagoniza. Apelidado de “Rei do Simigwa-Highlife”, Gyedu-Blay apadrinhou a invenção de um estilo musical que funde o tradicional Highlife ganês a géneros como o funk e o jazz, os quais começa a envolver, mais tarde, com os sintetizadores, resultando em densas composições – as quais ocupam um lugar de missão política pan-Africana, movida pelo combate às desigualdades e expressões neocolonialistas. No entretanto, decorria no Palco Castelo o concerto de Rodrigo Leão, que já havia estado no MED em 2017, e que este ano veio substituir a cabo-verdiana Nancy Vieira. Novamente rumo ao Palco Chafariz, desta feita para Jupiter & Okwess, vindos da República do Congo e assumidos discípulos do “Bofenia Rock”, estilo marcado pela recuperação das melodias tradicionais do Congo, combinadas com ritmos mais urbanos, e que no MED se escutou por via de temas como os de “Kozonga”, álbum lançado no ano passado. Enquanto isso, havia já começado no Palco Matriz o concerto de Eskorzo, vindos de Granada, onde a música afro-cubana, a cumbia, o rock, o punk, o reggae, e o jazz se atam, logo em temas como Amenaza Fantasma, com que encetam a atuação, cujo clímax terá talvez acontecido ao som de Zona Caliente, tema que vem no mais recente álbum – “Alerta Caníbal”, de 2017.
Quase a fechar a noite, começava no Palco Cerca, pouco depois da uma, aquele que foi talvez o concerto mais aguardado da noite: Go_A, grupo ucraniano de folktrónica que se havia tornado popular pela participação na Eurovisão no ano passado, a qual valeu ao tema Shum o quinto lugar. Do lado de lá, um toque gótico e algo soturno vindo da guitarra de Ivan Hryhoriak; das teclas e percussões de Taras Shevchenko; da sopilka, floyara, frilka e outros instrumentos tradicionais do folclore ucraniano tocados por Ihor Didenchuk. Em redor, há ainda um violão, sintetizadores, uma flauta, coros, uma harpa de boca e sofreguidão na voz intensa de Kateryna Pavlenko, a cada inevitável evocação ao povo ucraniano. Do lado de cá, uma onda de solidariedade vinda do público, em particular da comunidade ucraniana que aqui se vinha juntando antes do concerto, e que durante todo ele fizeram agitar as bandeiras ao ombro. Go_A – um grupo instituído de significação que se estende para lá da música; um grito ao futuro e o esforço por não esquecer as raízes ancestrais do país. A fechar a noite, ou a torná-la ainda mais tórrida, ao Palco Matriz sobe o português Magupi, a substituir os sírio-germânicos Shkoon Live.
Feitiço, resgate e fluorescência – 2.ª noite, 1 de Julho
Entramos na segunda noite enfeitiçados pelo violino dos portugueses Albaluna. Vindos de Torres Vedras, Raquel Monteiro, Ruben Monteiro, Dinis Coelho, Christian Marr’s, Carla Costa e Tiago Santos vieram ao MED celebrar a reedição do disco de 2019, aos quais se juntaram alguns temas do álbum de 2021, “Heptad”, inspirado nas culturas da Rota da Seda e cujas letras podem ser encontradas num livro de poesia. entretanto editado. Quem diria que a música tradicional portuguesa, a sonoridade medieval evocada pela gaita de foles e pelo realejo, e um fervilhante rock progressivo emancipado pela guitarra, pelo baixo e pela bateria, inspirações de música turca, árabe, afegã e grega (sendo a última manifestada pelo “bouzouki”) comungassem numa sonoridade tão híbrida e, por isso, tão única. Enquanto isso, pouco depois das 21 horas escutava-se Viviane, cantora algarvia de ascendência francesa, que tem o Fado como alicerce de uma sonoridade embebida em influências do pop, género em que se lançou, nos anos 90. Ao MED, Viviane veio apresentar alguns dos temas de “Quando Tiveres Tempo”, editado este ano. Seguimos com os lisboetas Expresso Transatlântico, grupo de Gaspar Varela na guitarra portuguesa e Sebastião Varela na guitarra elétrica (sobrinhos-bisnetos de Amália Rodrigues), aos quais se junta o baterista Rafael Matos. Nota curiosa para alguns dos temas apresentados, ainda sem título, como se vindos diretamente da gaveta para o palco.
Falemos depois de subtileza nas palavras, de virtudes dormitivas na voz, intervaladas com momentos de um auto-cafuné capaz de endoidecer qualquer corpo: Mallu Magalhães que, além do projeto a solo, encontramos na Banda do Mar – coletivo luso-brasileiro formado por Marcelo Camelo e o baterista português Fred Ferreira (dos Orelha Negra). Uma atuação que contou com a passagem por “Esperança”, álbum de 2021, da qual nos fica na memória o tema Deixa Menina, música dedicada à filha Luísa. Ainda pelo Brasil, mas agora no Palco Chafariz, é a vez de Johny Hooker, “mulher feroz no corpo de um homem com olhos lacrimejantes” e porta-voz LGBTQI+, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um dos seus embaixadores pela igualdade no Brasil. Encontramo-lo entre a música, o cinema e a televisão, na forma de ator, realizador ou produtor. É nesta multidisciplinaridade que Hooker vem abordando questões de identidade e género, o que coagula em “Ørgia” – o mais recente trabalho, criado com base nos diários do argentino Tulio Carell, uma das primeiras obras a trazer a homossexualidade para o espaço público na América Latina.
Num registo bem diferente – ou não fosse a ode à coexistência do diferente a premissa basilar do MED, é no Palco Cerca que a música tradicional marroquina (em particular a gnawi – género subsariano de inspiração sufi) se funde harmoniosamente com a eletrónica e o jazz: escutamos o berbere Gnawa Simo Lagnawi no projeto Electric Jalaba, no qual entra ainda o baterista anglo-italiano Dave De Rose, bem como os irmãos e músicos britânicos Henry, Nathaniel, Oliver e Barnaby Keen. Segue-se o dueto franco-marroquino N3rdistan, que junta o cantor Walid Bem Selim e a rapper Widad Broco (uma das primeiras rappers no mundo árabe). De um teclado e uma cítara se faz este híbrido entre trip hop, eletrónica, rock e batidas orientais, as quais se compassam com poesia de autores disruptivos no mundo árabe, em particular no dialeto darija. Exemplos são o sírio Nizar Qabbani (“o poeta das mulheres) e a poetisa iraquiana Nazek El Malaeka, fundadora da chamada “poesia livre” e ativista pela condição feminina no Médo Oriente.
A viragem da noite faz-se no Palco Matriz ao som dos Turbulence (substitutos de Anthony B), e ainda no Palco Chafariz, com Bombino. Um apelido que é fruto de uma corruptela do italiano “bambino”, por se ter estreado na música tão novo, desafiando trâmites políticas e sendo, por isso, perseguido – o que acabou no exílio na Argélia e na Líbia, onde foi pastor – momento determinante na vida do jovem músico, feito da aprendizagem da guitarra. Cedo veio dando mostras de um talento antes castrado, marcado por uma combinação entre os ritmos tradicionais berberes e o rock, aos quais veio juntando influências de blues e do reggae.
Deixando para já suspenso o mundo tuaregue, há, por volta da uma da manhã, um outro mundo que nos puxa, de geografia dificilmente precisa. Há neste mundo um performer que dança, corre, esbraceja e nada no chão; rostos cobertos como múmias; baterias, um teclado; mensagens sobre o neocolonialismo, apocalipse, ditaduras, emergência climática, corrupção, tudo isto ao ritmo de um kuduro experimental – e daí ser-nos difícil dar concretude ao tempo e ao espaço de onde nos vêm ou para onde nos levam, ou não recaíssem estes motes de sátira em tantos territórios. Trata-se de Ikoqwe, projeto que junta Pedro Coquenão, conhecido por “Batida”, e o rapper e ativista angolano Luaty Beirão. Em Ikoqwe, o choque com realidade de injustiça e normalidade com que essa parece ser encarada são-lhes mote para este projeto algo dadaísta e absurdo, feito de calão angolano, notas e ritmos aparentemente disformes e fora de sítio, pouco concordantes entre si – como se respostas a essa resignação ao injusto, ao mundo plástico que os leva a falar de uma “história falsificada” que tentaram representar por via de sons oriundos dos arquivos da Biblioteca Internacional de Música Africana, à qual Batida teve acesso, em 2019. Atuação sinestésica, ainda que público viesse minguando à medida que caminhava para o fim.
Fluorescente como as vestes que têm no corpo, e de Bogotá para Loulé, a noite finda no Palco Matriz com Ghetto Kumbé – trio colombiano que nos presenteia com ritmos afro-caribenhos e percussão a imperar, mesclada com House. Aqui, dança e festa como veículos de transmissão de uma mensagem política e social, de denúncia de desigualdades e abusos de poder – eles próprios se designam de “banda visceral que se inspira na realidade social da Colômbia e nos diversos movimentos revolucionários que nos últimos tempos têm surgido um pouco por todo o lado”. Ghetto Kumbé contam com um contrato com a ZZK Records, editora pioneira de música eletrónica da América Latina, com a qual lançaram há dois anos o álbum de estreia homónimo, e ao som do qual nos despedimos da penúltima noite do festival.
Vínculo pelo sossego, pela demora, pelo ancestral – 3ª e última noite, 2 de Julho
O início do fim do MED dá-se no Palco Chafariz com Oum Trio Mouthallat, franco-marroquino, projeto que junta Oum, cantora e compositora marroquina, ao conterrâneo Yacir Rami, no oud árabe (alaúde), e ao francês Guillaume Latil no violoncelo. Um encontro entre Oriente e Ocidente feito de cordas, tão presentes em ambas as geografias, elo que as une, por mais que de formas distintas. E se fama nem sempre vem por intrínseca qualidade musical, Maro trá-las a ambas. Participação recente no Festival Eurovisão da Canção, ao qual levou o tema Saudade, Saudade, que lhe valeu o nono lugar, e talvez por isso o concerto mais aguardado da noite, e que a impossibilidade de “furar” a multidão no Palco Cerca veio confirmar. Falar de Maro implica pensar sobre fragilidade, sobre o poder da fragilidade, da maciez numa voz que irrompe vinda de um espetro aparentemente fechado, ainda assim profundo e harmónico. Quinze minutos depois de Maro iniciar, escutava-se no Palco Castelo a viola campaniça ao colo d’ O Gajo, projeto de João Morais, acompanhado pelos enormíssimos Carlos Barretto no contrabaixo e José Salgueiro na percussão. A uma Cidade Fantasma que era Lisboa e na qual um não tão longínquo confinamento transformou as demais cidades, houve ainda tempo para escutar Varredouro, tema de 2019, desaguando em Trinca Fortes, alcunha de Camões e título do tema escolhido para findar o concerto-viagem por uma cidade que percorremos por via dos títulos dos temas e musicalmente narrada por via de um instrumento vindo de um Alentejo profundo. Feitas as 23, escutava-se Victor Zamora & Sexteto Cuba, grupo criado pelo pianista Victor Zamora, nascido em Cuba, mas radicado em Portugal, e, perto das 23h30, enchia o Palco Matriz para a angolana Aline Frazão, acompanhada da poderosa Pri Azevedo nas teclas, que nos encanta noutras aparições, como aquelas que se dão com Luca Argel. Aline é pujante, na voz e no tom ativista, no diálogo com Angola que lhe é transversal aos álbuns, em particular naquele que o deixa bem explícito: “Uma Música Angolana”, lançado este ano, onde os ritmos afro-brasileiros se fundem na perfeição com toques jazzísticos. Seguimos com o espanhol Rodrigo Cuevas, pelas 22h30, no Palco Chafariz, e, de volta ao Brasil, com Tainá – substituição de última hora para o germano-nigeriano Ayo. Um concerto bem intimista – à semelhança do que nos havia já habituado o Palco Castelo, e que abre com o tema “Tanta Gente”, seguido de “Caminhar”, sobre o qual discorre Tainá: “o corpo é muito pequeno para a imensidão do que somos.” Escuta-se, ainda, “Jasmim” – tema que levou ao Festival da Canção, no ano passado.
A sair de Tainá e a perseguir o calor de Chico Trujillo, lembramos o forte vínculo entre este festival e o que há de local pelas ruas, desde a gastronomia ao artesanato. Eis o Loulé Criativo a prová-lo, projeto da Câmara Municipal de Loulé, nascido do desiderato de valorizar o património imaterial do Algarve, acordando, para tal, algumas das artes mais antigas e tradicionais da região. Espalhadas pelas ruas estão as oficinas artesanais contempladas nesse projeto, cuja abertura durante a noite vem estreitar o contacto entre os artesãos locais e os transeuntes. Voyeurs miram estas oficinas de relance, enquanto percorrem as ruas; eu própria assim começo diante da Casa da Empreita, uma dessas oficinas, mas abre-se uma vontade de ir adentro que não se trava. Envolta de folhas de palma está Alzira Neves, que nos fala deste trabalho moroso e tão tradicional no Algarve, que lhe é rendimento e espécie de terapia em simultâneo, quase como forma de emancipação diante da velocidade que nos (des)orienta os dias. Outrora símbolo de pobreza, a empreita caminha hoje para elemento de moda. Sobre isso, quem melhor que a própria Alzira para nos falar?
Finalmente, chegamos a Chico Trujjillo, presença musical proeminente em festas universitárias chilenas. Arrisco a dizer que terá sido esta a plateia mais mexida das três noites, feita de corpos endoidecidos com a versão de Tus Besos Son; de destrancar a anca do início ao fim, sem espaço para o acanho, pudor ou retração, apenas para a libertação que nem as pausas mínimas entre os temas impediram. Temas como Pobre Caminante, Conductor, Pajaro Zinzontle e Medallita fizeram ainda parte do repertório escolhido. Rumo ao Palco Cerca, escuta-se Manou Gallo, da Costa do Marfim. Aos oito anos, movida por uma pontada de ousadia, pedia Manou que lhe ensinassem a tocar tambor – instrumento culturalmente reservado aos homens. Seguiu-se o baixo, instrumento que a acompanha até hoje, e com o qual tece esta mistura de funk, soul e jazz, auxiliada pelos americanos Chuk D e Bootsy Collins, e ainda pelo músico camaronês Manu Dibango.
Belíssimo tom grave, o de Manou, ainda que tenha suscitado algumas sobrancelhas crispadas, corpos inertes e, com o passar do tempo, diminutos, o que nos leva a crer de que esta atuação devia ter decorrido mais cedo – por cá subscreve-se, ou não tivéssemos nós saído da azáfama ‘ensuarada’ de Chico Tujillo. A noite contou ainda com Scúru Fitchádu e o seu funaná fundido com uma base eletrónica e uma estética punk, rico em referências a Amílcar Cabral, figura proeminente na luta pela independência do povo africano. Um legado herdado da mãe angolana e do pai cabo-verdiano, influências que se miscigenam em Scúru Fitchádu.
Impressões finais
Refira-se, em jeito de síntese, o teor ainda mais eclético que fez o programa deste ano, que pôs a Música de mão dada com o Cinema, a Literatura, o Teatro, as Artes Plásticas, o Artesanato e a Gastronomia, expressões culturais concretizadas por via das várias ramificações do Festival: Cinema MED, a qual contou com a curadoria de Rui Tendinha e com um novo modus operandi: os cine-concertos, através dos quais os filmes exibidos foram musicados ao vivo; MED Kids, com ateliês e workshops dedicados ao público infantil; o MED Classic, este ano desenvolvido na igreja de São Francisco; o MED Jazz, nos Claustros do Convento (em edições anteriores dedicados ao Fado), com uma programação desenvolvida em parceria com a Associação Cultural Mákina de Cena. Refira-se também o papel do Loulé Film Office – responsável pela produção do trailer do festival e pelo Cinema MED. Um conjunto de entidades parceiras que faz justiça ao “objectivo de envolvimento associativista”, referido por Carlos Carmo. As novidades desta edição contaram ainda com o Palco Hamman (palavra árabe para “banhos”), situado no logradouro dos recém inaugurados Banhos Islâmicos, agora re-significados pela música de Suricata, Amar Guitarra e Terra Sul; o Cineteatro Louletano, a Casa da Cultura, a Igreja Matriz; a Biblioteca Municipal e a Casa do Meio Dia, que recebeu, no Domingo, a conferência “Sustentabilidade Ambiental nos Festivais de Música”, organizada pela autarquia e pela APORFEST – Associação Portuguesa de Festivais de Música. Destaque para o último ponto e para as inerentes preocupações ecológicas do MED, materializadas, por exemplo, no Palco Hamman, decorado com peças criadas com materiais reutilizados, fruto da intervenção do Movimento Infinity, que junta a Inframoura e o Loulé Design Lab. Acresce a recorrência à energia solar em vários pontos de restauração, copos reutilizáveis, pontos de água potável, dispensadores de beatas, papeleiras inteligentes e outras medidas que já valeram ao Festival MED o Selo Verde, atribuído por reconhecimento de boas práticas em festivais de Música. Uma preocupação ambiental que, contígua à simbiose perfeita entre as gentes locais, a História, a Música e a Cultura, põe o MED na lista de festivais obrigatórios, a cada Verão.