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Um abalo cósmico em três actos – King Gizzard and the Lizard Wizard @ Coliseu de Lisboa
De 18 a 20 de maio, o Coliseu dos Recreios acolheu uma multidão humana de diversas nacionalidades que se congregou para o regresso triunfal dos King Gizzard and the Lizard Wizard a Lisboa. Um trio de dias marcante não só enquanto ponto de partida para a nova tour internacional da banda, mas também como primeira […]
De 18 a 20 de maio, o Coliseu dos Recreios acolheu uma multidão humana de diversas nacionalidades que se congregou para o regresso triunfal dos King Gizzard and the Lizard Wizard a Lisboa. Um trio de dias marcante não só enquanto ponto de partida para a nova tour internacional da banda, mas também como primeira paragem pelo continente europeu em formato residência.
Preambulando pousios de três dias em Barcelona (Espanha), Vilnius (Lituânia), Atenas (Grécia) e Plovdiv (Bulgária), a residência da banda pela capital portuguesa consistiu num trio de concertos em que os australianos construíram alinhamentos distintos a partir da sua já vasta discografia editada numa dúzia de anos. Ao contrário de muitos grupos ou artistas que passam por terras lusas e – devido à eventual vasta procura de bilhetes que geram – acabam por repetir o mesmo concerto numa (ou quatro) data(s) extra(s), o objetivo deste sexteto seria presentear Lisboa com três concertos diversos.
E, se há poucas bandas que se prestam a cumprir esse desafio hoje em dia, são os King Gizzard and the Lizard Wizard. Desde o seu início em 2010 que o grupo se tem mostrado igualmente prolífico e hiperactivo no que toca quer a agendamentos ao vivo, quer sobretudo a trabalhos de estúdio, chegando inclusive a ter editado cinco discos de originais apenas em 2017. O seu portefólio atual de LPs, que se iniciou em finais de 2012 com o disco de estreia “12 Bar Bruise”, conta agora com 27 trabalhos de estúdio, tendo o mais recente “Phantom Island” sido lançado esta semana.
Portanto, com quase três dezenas de discos no bolso, dúvidas não havia que a banda de Melbourne conseguiria a proeza de não repetir temas durante esse trio de noites, ficando apenas a incógnita de saber quais as peças da discografia ou iniciativas de concertina que eventualmente não receberiam a ribalta ao vivo. Segue assim um relato sucinto mas completo deste evento musical que, durante três dias, transformou o Coliseu dos Recreios num cerne galáctico do apelidado Gizzverse.
Dia 1: Causing mayhem,’cause he’s the boogieman
Após uma meia-hora festiva a cargo dos Etran De L’aïr, seguiram-se mais 30 minutos de ansiedade pela entrada dos King Gizzard and the Lizard Wizard. De facto, a expectativa que se fazia sentir no recinto esgotado nessa primeira data era palpável, manifestando-se de viva voz quando surgiu no ecrã o apelo da banda em respeitar o espaço pessoal de cada transeunte do crescente «enxame esquisitóide» de fãs. Quando a banda surge a salutar «Lisbane!» (dito com um sotaque australiano cerrado), a euforia do público irrompe enquanto Stu Mackenzie e Joey Walker recordam a sua passagem anterior pela vizinhança no Vodafone MexeFest de 2014, bem como o desejo latente desde então em pisar o palco do Coliseu, assinalando tal momento como uma punchline a uma piada longínqua.
Após essa introdução jocosa mas sincera, abrem as hostilidades musicais com os riffs de “Mars For The Rich”, amostra de rock distópico de “Infest the Rats’ Nest”, disco de 2019 que marcou a primeira incursão da banda nos meandros do metal. Veia pulsante que teve continuidade em “PetroDragonic Apocalypse; or, Dawn of Eternal Night: An Annihilation of Planet Earth and the Beginning of Merciless Damnation” de 2023, corolário musical evidenciado de seguida com “Converge” e “Witchcraft”, uma dupla de temas cuja transição ao vivo foram efetuadas de modo exímio, superando a sonoridade das versões discográficas. Como tem sido hábito nos seus concertos, os King Gizzard demonstram-se como uma das bandas mais proficientes em pegar nas pautas básicas das suas gravações de estúdio, desenvolvendo-as em improvisações de complexidades distintas.
Fluidez que se tornou evidente quando, após tais temas de teor pesado, a banda vira-se para um tema igualmente distópico – o do aquecimento global – com “Antarctica”, tema do mais recente “Flight b741” que os músicos dedicaram a «todos os ursos polares em negação», comentário que igualmente poderia tomar contornos de alegoria política. Se a parábola era prevalente, caia facilmente no esquecimento com o desenrolar instrumental pelo qual a sonoridade dos australianos transitava gradualmente para acordes de boogie-rock simultaneamente gigante e gingante, evocando a memória da escola de Woodstock. Embora inicialmente se estranhava a presença de muitos com t-shirts de The Grateful Dead ou Phish, nesse momento todos esses exemplos de indumentária fizeram sentido.
A banda em palco manteve-se nessa cadência sonora despreocupada com rótulos musicais, ora virando-se para os esquemas de jazz-rock de “Ice V”, quer pelo progressivo fulminante de “Nonagon Inifinity”. Dois temas deste disco de 2016 (“Gamma Knife” e “People Vultures”) acabaram por dar azo ao principal chamariz visual deste primeiro dia, cujo apogeu se manifestou com o desvendar do respectivo design da capa. Já em termos auditivos, um “Boogieman Sam” prenunciado por um repentino apelo político relativo à Palestina destacou-se enquanto culminar de várias provocações tonais que a banda foi efetuando ao longo desta sessão inaugural, desde riffs de guitarra elétrica pautados pela secção rítmica de Michael Cavanagh na bateria e Lucas Harwood e pontuados pela harmónica de Ambrose Kenny-Smith.
Guisado musical que acabou por transitar para “Slow Jam 1”, a qual, juntamente com “Am I In Heaven?”, demarcou o disco “I’m In Your Mind Fuzz” como peça discográfica mais antiga a receber a ribalta nestas três noites. A banda encerrou a sua primeira data lisboeta retomando o poderio de “Infest” com um “Self-Immolate” gutural, cuja energia transbordou para o público entusiasmado após Mackenzie cortar o cabelo à máquina – com a ajuda dos membros da banda e inclusive de um elemento da plateia – antes dessa faixa final.
Clímax que, dada a reação geral de um Coliseu esgotadíssimo, dava a entender como que a banda estaria para abandonar os planos da residência. Apesar disso, a maioria do público efetivamente negou tal conclusão, com muitos a responder com entusiasmo a Joey Walker quando este pergunta «alguém volta cá amanhã à noite?».
Dia 2: Welcome to an Altered Future
Sendo certo que as restantes duas noites da residência revelariam uma plateia ligeiramente mais folgada em pessoas, a diferença não foi considerável e certamente não fez diminuir o calor humano. Aliás, os aglomerados de fãs manifestaram-se de viva voz não só no concerto de abertura, mas sobretudo na zona do merchandise, esperando adquirir uma t-shirt ou um cobiçado poster do dia, sendo geralmente este o primeiro item a esgotar nessa banca. O entusiasmo por receber os King Gizzard claramente não esmoreceu, com a banda a iniciar o segundo dia com uma improvisação psicadélica inicial de 40 minutos, interligando “Iron Lung” (de “Ice, Death, Planets, Lungs, Mushrooms and Lava”) com “Hypertension” (de “Laminated Denim”), rematando por fim com “This Thing” (de “Fishing for Fishies”).
Rapsódia oriunda de faixas de três discos distintos, a cujo nexo se agregaram pequenas migalhas sonoras de avulsos temas (alguns dos quais já haviam sido interpretados na íntegra durante a noite anterior) num jogo constante dos músicos com as expectativas do público. Era comum a banda aludir a certos temas através de acordes iniciais, com os riffs a cimentar uma escolha musical distinta, ludibriando o público. Apesar do aparente improviso musical, tratava-se de uma sequência caoticamente calculada, marca da proficiência musical da banda em saltar facilmente de uma fase discográfica para outra, aqui complementada por visuais alucinantes e magnéticos, a recordar a era “Meddle” dos Pink Floyd.
Não obstante o quebra-cabeças melódico desvendar-se em tal assombro constante, foi na imagética desta sessão que se evidenciou a maior evolução da residência. Enquanto o concerto inaugural levou a crer que o carisma visual seria somente um pano (muito) de fundo para realçar a devida ribalta musical da banda, os visuais da segunda noite envergaram-se mais cuidados e concretos, não apenas como elemento redundante para estes espetáculos musicais e sim como parte integrante dos mesmos. Além da introdução psicadélica a invocar os saudosos espíritos do rock psicadélico de décadas anteriores, os visuais evoluíram de forma simbiótica com o alinhamento a demarcar fases musicais da discografia dos australianos.
Foi a etapa metaleira a demarcar presença regular nesta residência lisboeta, o que é compreensível dada a empatia vocal do público a entoar em uníssono o refrão de “Supercell”. Contudo, os Gizzard acabaram igualmente por enveredar pelas suas composições de natureza microtonal como “Doom City” ou “Nuclear Fusion”. Esta última teve inclusive direito a uma introdução vocal de uma dupla de elementos da plateia, convidados pela banda para auxiliar nessa tradição das suas tours. A energia punk retomou com um fulminante “Evil Death Roll” que mais uma vez pôs a plateia toda a cantar e dançar por entre grupos de mosh ou turbilhões de pessoas que se salientavam na visão abrangente da galeria do Coliseu.
Num desenlace teatral desta noite intermédia, a banda introduz a vindoura música como sendo «sobre o futuro» e, contra todas as expectativas, toca ininterruptamente toda a secção final do disco “Murder of the Universe”, uma epopeia de ficção científica imunda que invoca quer os lirismos clássicos de Zelazny, quer os visuais inusitados de Tsukamoto, demarcando-se não só por entre os cinco discos que a banda editou em 2017, mas também por entre o culto de fãs que vai absorvendo toda e qualquer mitologia criada a partir da discografia. Como epílogo, o Coliseu foi presentado com uma rendição energética de “Le Risque”, com os míticos riffs de “La Grange” dos ZZ Top a servirem de prólogo instrumental.
Dia 3: With fire in belly, flames in eyes
Não obstante a piadola de já se encontrarem cansados no final da segunda data, os King Gizzard mantiveram a promessa de ver o público lisboeta para o concerto final da residência. Quem igualmente manteve o fulgor foram os Etran De L’aïr que durante os três dias abriram com um set matematicamente preciso – sempre 30 minutos certeiros – que cumpriu o propósito de aquecer a plateia. Embora não tivessem uma discografia tão ambiciosa como os australianos, a verdade é que cumpriram proeza semelhante de não repetir temas, escolhendo a dedo diversas faixas dos seus dois álbuns de estúdios, “Agadez” e “100% Sahara Guitar”. Credite-se assim o trio nigeriano do enorme mérito de suscitar o êxtase dos presentes através do seu desert blues energético, mesmo que ninguém cantasse a plenos pulmões as letras.
Não foi o caso dos King Gizzard & the Lizard Wizard, com as estrofes iniciais de “The Dripping Tap” a incentivar um coro de pura alegria de todos os presentes, desfazendo assim o temor de que o eclético “Omnium Gatherum” tivesse sido porventura esquecido dos alinhamentos. O tema inaugural desse trabalho de estúdio tem aproximadamente 20 minutos, mas a banda, mais uma vez na sua abordagem inusitada, abandonou a ideia de tocar o mesmo na íntegra, aproveitando a ponte instrumental após a primeira parte da música para transitar lentamente para “Magma” de “Ice, Death, Planets”, outra raridade no que toca a presenças no alinhamento musical. «We’re so back we’re back!», gritavam um pequeno consórcio de fãs americanos da banda, eufóricos com a passagem musical e o devido destaque a ambos estes temas de abertura.
No entanto, a maior euforia do público do Coliseu rebentou com o crescendo instrumental que preconizava “Rattlesnake”, talvez das composições mais orelhudas de toda a discografia dos Gizzard, quase ao ponto de poder ser confundida com um chamado single de sucesso. O tema inicial de “Flying Microtonal Banana” de 2017 deu azo à secção microtonal, tendo sido sucedida por “Straw In The Wind”, das poucas músicas de “K.G.” a receber o tratamento ao vivo na totalidade – dado que vários dos teases mencionados acima advinham precisamente deste longa-duração, bem como de “L.W.”, dupla de discos pertencentes à série “Explorations into Microtonal Tuning” –, que também assinalou o terceiro momento de maior interação entre palco e plateia, desta vez por iniciativa de Ambrose Kenny-Smith ao desaparecer momentaneamente por entre o público.
Após esse insólito social, a banda retomou a sua veia metal – para a qual o público português estava claramente enviesado – com um segmento bem mais repleto que os das duas noites anteriores, com uma mão cheia de temas de “Infest”, “PetroDragonic” e “Omnium”. Deste último, o grande destaque para “Gaia”, música que acabou por enquadrar os temas “Gila Monster” (que, à semelhança de “Supercell”, levou a um potente coro rítmico do público) e “Flamethrower”. Tais amostras de “PetroDragonic” serviram por sua vez de cordão umbilical para a vertente mais aguardada da noite, senão mesmo da residência. Os King Gizzard têm explorado várias facetas musicais ao longo da última década, sendo a mais invulgar de todas a do disco “The Silver Cord”, onde a banda se prestou a não usar guitarras, virando-se para o artesanato musical exclusivamente electrónico.
O suporte para traduzir essa iniciativa para os concertos ao vivo era uma mesa apelidada de “Nathan” (quase tratado como um sétimo elemento da banda) que esteve ausente nos primeiros dois dias, não obstante nas redes sociais já se ter confirmado a sua presença. Em cerca de 15 minutos, os Gizzard construíram uma dialética entre os riffs pesados de guitarra e a ambiência dos sintetizadores, até eventualmente desenvolverem-se numa ambiência de eletrónica progressiva, a recordar projectos de krautrock como os Faust ou os Tangerine Dream. “Extinction” e “Set” foram as duas pedras basilares para este mini-concerto hipnótico dentro do concerto de rock. Os australianos fecharam de seguida as hostilidades com “The River”, única amostra de “Quarters” que, em 2015, desbravou as fronteiras musicais do colectivo ao enveredar pelos improvisos jazz.
Uma táctica final algo ambígua neste vasto tríptico de dias, com um sabor mais ponderado e reticente que a apoteose exclamativa que ditava as expetativas. Quiçá para dar seguimento para mais um regresso à capital portuguesa daqui a uma década – ou menos, dada hiperatividade da banda – tal como sucedeu dada a sua estreia em 2014 e o presente ano. Em todo o caso, a residência da banda de rock/jazz/eletrónica demarca-se facilmente como um dos grandes eventos de música ao vivo de 2025 no nosso país. Incontáveis teorias ainda hoje decorrem sobre a criação do universo, desde a explicação do big bang até à obra a cargo de uma entidade divina que decorreu durante sete dias. Mas para os King Gizzard and the Lizard Wizard, bastaram três noites no Coliseu dos Recreios.
Texto: Pedro Nora
Fotos: Eduardo Negrão
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