A RUC nos 20 anos de OUT.FEST
Entre os dias 2 e 6 de outubro, a RUC esteve no Barreiro para uma experiência imersiva que misturou a música livre e exploratória com os recantos da cidade da margem sul.
Este ano, mais que tudo, havia motivos para celebrar: 20 anos de OUT.FEST. Uma edição especial com 33 concertos selecionados a dedo e espalhados por 8 salas também elas únicas.
E foi assim:
2.10
Atravessando o Tejo de barco até ao Barreiro, embarcámos no primeiro dia de OUT.FEST. O festival cujo cartaz deixara mais do que curiosidade e entusiasmo estava prestes a começar e o primeiro concerto foi nada mais nada menos do que a estreia no OUT.FEST do projeto A Viagem d’Os Heróis Indianos Romanos Africanos.
O projeto que nasceu em 2016 na IPSS barreirense NÓS graças à OUT.RA pisava agora o palco nesta edição celebrativa do festival. Coordenados pelo mítico músico Anla Courtis, e com o apoio de André Neves, Bernardo Álvares e Leonardo Bindilatti, Os Heróis Indianos Romanos Africanos têm vindo a criar música e a desenvolver um trabalho único com vista à inclusão social de pessoas com deficiência ou em situação de risco. O concerto, que decorreu no Auditório Municipal Augusto Cabrita, contou com cerca de 20 pessoas em palco e foi, como prometia, uma autêntica viagem musical em que barreiras foram destruídas e em que os verdadeiros heróis se destacaram a tocar os mais variados instrumentos. Um concerto perfeito para inaugurar o vigésimo aniversário desta edição.
Falámos um bocado com Anla Courtis:
e ainda com o Acácio, membro da banda:
Ainda perplexos com o mágico concerto de abertura, finalizámos este primeiro dia na Sala 6, com Rodrigo Amado Unity. Esta sala pequenina e bastante aconchegante localizava-se por baixo da escola de jazz do Barreiro e acolheu uma sessão de puro jazz protagonizada por nomes conhecidos de outras edições deste festival: Rodrigo Amado no saxofone, Hernâni Faustino no contrabaixo, Gabriel Ferrandini na percussão e Rodrigo Pinheiro no piano.
Dado por terminado o primeiro dia do OUT.FEST, atravessámos o rio, verdadeiramente entusiasmados para o que estava ainda para vir.
3.10
O segundo dia no Barreiro chegou-nos quente e húmido, e levou o público a uma das duas igrejas que receberia concertos nesta vigésima edição de festival: a Igreja Nossa Senhora do Rosário. A primeira atuação foi de Zoh Amba, nome prodígio da cena jazz americana. Apesar de mais conhecida pelo recurso a instrumentos de sopro como o saxofone e a flauta, foi a voz acompanhada pela guitarra que ressoou em grande parte do concerto. Um punhado de canções folk levaram-nos à intimidade da artista que, apesar de pouco confiante com o instrumento de cordas afinado quase a cada música, demonstrou que também na escrita de letras pode singrar.
Ao início da noite e já de barriga cheia seguimos para a Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense “Os Penicheiros”, uma das coletividades de referência da cidade. A multidão foi-se formando, entre copos e conversas, para receber um dos nomes mais sonantes do cartaz deste ano: Dreamcrusher. A performance começou quase como que um ritual, com a preparação do ambiente para o abrupto início que se seguiria. A escolha de temas dançáveis para o aquecimento deu lugar ao caos sonoro tão acarinhado pelos fãs do projeto, e a verdade é que o público do OUT.FEST pareceu não ficar aquém da energia eletrizante de Dreamcrusher: se no início se mostrou tímido, rapidamente respondeu com entusiasmo à energia imposta. Uma catarse coletiva que depois de saltos e mosh, culminou na dança eufórica ao som de um curto DJ set.
O terceiro e último concerto desta quinta-feira foi uma estreia nacional: a dupla formada por billy woods e Elucid, também conhecida por Armand Hammer. Os veteranos apresentaram-se num registo tradicional de hip-hop, ainda que com uma veia experimental e obscura, numa atuação em que a palavra foi o elemento determinante.
4.10
Na sexta-feira preparámo-nos com entusiasmo para um dia longo e repleto de concertos. O dia começou com uma conversa entre DeForrest Brown Jr. e Margarida Mendes.
Após a conversa dirigimo-nos a mais uma bela igreja, desta vez a Igreja de Santa Cruz. Aqui, o projeto Leida inaugurou este mágico espaço. Mariana Dionísio, fundadora do grupo, refere-o não como um coro mas como um instrumento musical. 8 Vozes únicas ecoaram no espaço e estimularam uma experiência auditiva inigualável. Leida explorou o som de uma forma deslumbrante, recorrendo a elementos sonoros angelicais e etéreos e a uma linguagem fabulizada.
FUJI|||||||||||TA veio de seguida e apresentou novos trabalhos. Um objeto de metal estendia-se perante o artista japonês e com ele, Fujita Yosuke criou ritmos e sons enigmáticos: desde sonoridades metálicas, até à percussão e ao sopro. No final, terminou a sua performance com uma breve cantiga, recorrendo a um instrumento que se assemelhava a um khaen.
Depois de jantar fomos pela primeira vez à ADAO onde Inês, Arianna e Violeta tocavam já peças de deixar qualquer um a sonhar acordado. Inês Malheiro na voz, Arianna Casellas no violoncelo e Violeta Azevedo na flauta transversal apresentaram ‘Volatile Poem’, um projeto que inicialmente surgiu a convite do gnration e que se apresentava agora pela segunda vez. Uma atuação lindíssima que, apesar de inserida num festival recheado de grandes performances internacionais, acabou por ser um dos melhores momentos desta edição, pautado por uma cumplicidade que muitas vezes só se observa em projetos de longa data.
Direcionámo-nos para a outra sala da ADAO, onde Mariam Rezaei construía já uma alquimia de remixes de vinis através de scratches, passagens e misturas loucas. Um breakcore vibrante e energizante que encheu a sala de gritos e passos de dança.
Pelas 23h chegávamos à hora prevista de um dos concertos mais antecipados desta edição do festival: Donna Candy. O trio que em 2023 apresentou o fantasmagórico álbum “Blooming”, encontrava-se agora diante nós prestes a começar um concerto hipnotizante, poderoso e imersivo. Os nossos olhos ficaram perplexos com a quantidade de maquinaria que se estendia pela mesa de vocalista Nadja Meier e que serviu para preencher a sua voz com efeitos que transmitiram sentimentos de dor e tormenta. Sila Latz, na bateria, obrigava o público a balançar o corpo ao seu ritmo, enquanto que Js Donny rasgava riffs aterradores. Foi uma performance emo mais do que digna desta década.
Um nome familiar fazia rugir o sistema de som da sala central. O público rodeava agora o artista angolano Nazar, que apresentou uma performance live, onde misturou temas pesados e enérgicos com sonoridades ruidosas, enaltecidas pelas batidas possantes e acompanhadas pela sua voz poderosa.
Depois de Nazar, uma melodia magnetizante ecoava no canto escuro da ADAO e, atravessando o corredor, fomos quase como que puxados por este som hipnotizante criado pela banda France. O caricato trio começava a sua performance com Yann Gourdon na sanfona, Jérémie Sauvage no baixo e Mathieu Tilly na bateria. Os dois primeiros invadiram a plateia para uma comunhão imparável com o público, deixando apenas Tilly no palco.
Já perto das 3 de manhã, a atuação de Zancudo Berraco dava-se por terminada. Através de aparelhos analógicos, o artista fez o público suar com vibrações e ritmos contagiantes, cansando os corpos de quem a esta hora já só conseguia dançar.
Decidimos partir no shuttle organizado pelo festival, sem energia para acompanhar a noite e o último set: o de Nkisi. Tranquilizou-nos saber que o dia seguinte seria novamente preenchido por mais de uma dúzia de concertos.
5.10
Ainda um pouco embalados pelo dia anterior, dirigimo-nos para a Biblioteca Municipal do Barreiro, onde começavam os primeiros concertos do dia. Uma sala resguardada antecipava uma nova variante sonora prometida para este dia de festival: o ambient.
Eve Aboulkheir estreou o penúltimo dia das festividades com uma composição sonora mágica que guiou o público por um mundo misterioso e relaxante.
Logo depois, um nome português veio embelezar a mesma sala: Tomé Silva. O artista que muitos associam à percussão, uma vez que tem vindo a tocar bateria nos concertos de Maria Reis, trouxe material novo. Em abril deste ano, e através da Fera Felina, lançou “Quando Voltar ao Chão”, um álbum de música ambient e colagens sonoplásticas, e foi posteriormente convidado pelo OUT.FEST para fazer uma performance fora do habitual. Acompanhado por gravações do quotidiano captadas pelo próprio, Tomé Silva construiu uma narrativa nostálgica com o seu piano midi.
entrevista a Tomé Silva:
Ao mesmo tempo que Tomé Silva, Alfredo Costa Monteiro, iniciava a saga de concertos na sala d’Os Penincheiros. Através de uma profícua conversa, Alfredo deu-nos a conhecer mais sobre si e sobre o seu trabalho:
Pelas 18h, o salão d’Os Penicheiros encheu-se lentamente para receber Perila a solo, depois do cancelamento de Ulla umas horas antes. O mesmo espaço que há dois dias transpirava freneticamente ao som de Dreamcrusher, recebia agora uma plateia em busca do relaxamento que viria a encontrar nos novos e etéreos temas da artista russa. Perila apresentou-nos o seu novo trabalho “Intrinsic Rythm”, lançado pela Smalltown Supersound neste início de novembro.
Perila deu lugar ao projeto KAKUHAN, de Koshiro Hino e do violoncelista Yuki Nakawa, e foi uma das grandes surpresas deste dia. O sentimento geral em relação a esta atuação passou do não saber bem o que se esperar para a descoberta da viagem eletroacústica que os japoneses nos proporcionaram.
Após o jantar, regressámos à ADAO e conseguimos ainda assistir aos cinco minutos finais do concerto do português NU NO. Gritos inquietos e uma atitude punk mas sem descorar o carácter experimental da performance juntaram uma generosa plateia neste início de noite. Ficámos curiosos por explorar mais o trabalho do artista. Seguidamente, subiram ao palco Pedro Gomes, Miguel Abras, Gabriel Ferrandini e Pedro Alves Sousa com a sua formação CAVEIRA. De regresso ao OUT.FEST e com álbum lançado no primeiro trimestre do ano, ameaçaram a primeira enchente da noite, num concerto que foi uma autêntica descarga de energia que nos fez viajar ao no wave da Nova Iorque dos anos 70.
No dia após uma conversa sobre o seu livro “Assembling a Black Counter Culture”, Speaker Music dominou o palco como filho bastardo dos ritmos de Detroit e da experimentação electrónica. A sala da ADAO, preenchida de síncopes inesperadas, via os espaços vazios repletos de uma dança tão livre como despreocupada, num exercício que unia o teorista e performer americano a uma audiência igualmente cativada pelo ritmo. As também americanas H31R marcaram o início do que foi uma sequência de atuações brilhantes. Ritmos quentes e por vezes acelerados, mas bem adequados à atmosfera de festa já sentida na ADAO, deixaram o público rendido à mistura de hip-hop com eletrónica das autoras de “HeadSpace”.
“One guy, 4 walkmans” é parte da descrição da página de Bandcamp de um dos nomes que se seguiu. Os sérvios Lenhart Tapes e Tijana Stanković juntaram-se para uma ode absolutamente hipnotizante à cultura balcânica. O ruído das colagens nas fitas das cassetes, a cumplicidade entre os dois e a abertura entusiasmante com que o público rodeou os artistas foram os ingredientes perfeitos para a atuação que teve um cheirinho a trip hop místico.
Por esta altura, o ambiente na ADAO preenchia-se com emoções fortes: se por um lado muitos comentavam o que tinham acabado de assistir, outros iam-se juntando para assistir a um dos concertos mais aguardados de todo o festival: o de Nídia com Valentina. As artistas, acabadas de lançar “Estradas”, protagonizaram quarenta-e-cinco minutos de êxtase ritmado, quer pelas batidas de kuduro de Nídia, quer pelo vibrafone da percussionista.
O encerramento da noite ficou a cargo da francesa OKO DJ. Conhecida como “selector” eclética e amante de combinações pouco óbvias, a cofundadora da LYL Radio não desiludiu quem dela esperava o inesperado. Do metal ao gabber, de temas de Radiohead a The Durutti Column, OKO DJ cativou o público que junto dela reagiu divertido às várias mudanças de género musical.
Pedimos, numa breve conversa, para responder e falar de alguns temas.
O primeiro tema foi o seu programa de rádio:
Ainda sobre qual o seu processo para descobrir novas músicas:
E para finalizar, se Marina (OKO DJ), faz música ou se tem interesse de vir a fazer:
Uma noite em cheio que terminou tarde (ou cedo), com o primeiro barco de domingo para Lisboa.
6.10
Para nós, o dia de celebração do aniversário do OUT.FEST não começou tão cedo como gostaríamos. O cansaço acumulado e alguma preguiça trazida pela melancolia da chuva de um dia de domingo fizeram-nos chegar ao Paivense à hora do DJ set de ojoo. A artista marroquina foi conseguindo lentamente arrancar uns pezinhos de dança aos corpos mais cansados com clássicos como “Pull Up the People” de M.I.A.
DJ Anderson do Paraíso era um dos nomes que mais suscitava curiosidade nesta edição do OUT.FEST, pois após lançar o álbum Paraíso Sombrio em julho deste ano, o artista brasileiro criou toda uma nova narrativa à volta do funk brasileiro, concedendo-lhe uma veia mais sombria. Anderson fez um DJ set fresquíssimo, recheado de novas batidas funk misturadas com drill e instrumentais mais lentos, mas pesados. Conseguiu fazer o público balançar-se, contrariando o que seria o mais provável num domingo chuvoso como este.
Ainda posteriormente, falámos um pouco com o artista:
Quando achávamos que os ânimos começariam a acalmar, eis que surge o dub de sòn du maquís. O projeto do francês Stefan Dubs reuniu todos os resistentes para uma última e suada dança e conseguiu ser outra das grandes surpresas do OUT.FEST.
Neste último dia especialmente dedicado à comemoração do aniversário do festival, o público foi sendo cativado por um animador, que com a sua energia mobilizadora foi encaminhando os espetadores para as atuações. Apesar de não estar no cartaz, esta performance contagiou o ambiente do Paivense, principalmente nos instantes anteriores à última atuação do dia: a de Chuquimamani-Condori.
Chuquimamani lançou o seu mais recente álbum “DJ E” em meados de 2023 e desde então, tem vindo a apresentar este lançamento em performances ao vivo, tendo passado pela sala lisboeta B.Leza em junho. Desta vez deixou-nos surpresos, pois tocou temas ainda não publicados. Contrastando com os anteriores, os novos trabalhos apresentavam-se mais enérgicas e rítmicos, fazendo o público dançar complementado pela ambiência quase tropical vivida no salão. Um cenário digno de uma festa de baile de finalistas americana que teve a faixa “Eat My Cum” como banda-sonora de despedida.
Para nós, esta edição de 2024 foi a perfeita introdução ao universo do OUT.FEST: a combinação entre uma curadoria exímia e uma constante possibilidade de surpresa com um ambiente relaxado e de abertura exemplar ao desconhecido. Se alguns artistas escolhidos a cada ano nos agradam (e muito), parece-nos quase obrigatório desconhecer outros e partir à descoberta. E porque todos os anos o festival continua a crescer e ninguém chega demasiado tarde à festa, aguardaremos ansiosamente pela próxima edição.
Até já, OUT.FEST.