Manifestos de energia e nostalgia courense – Vodafone Paredes de Coura 2024
Os últimos dois dias do Paredes de Coura foram marcados por concertos memoráveis, guitarras barulhentas e palavras de ordem entoadas bem alto. Entre regressos tão aguardados, e estreias no festival, terminou mais uma edição de Vodafone Paredes de Coura.
Dia 3: Manifestos de energia numa noite de verão
De um segundo dia ameno de concertos e mais frio que o habitual, trazíamos no bolso a hora dos Protomartyr de Joe Casey, o seu pós-punk declarado de Detroit. Uma mistura de várias coisas que soam muito bem tinha isolado este poeta-herói no pódio dos concertos mais surpreendentes, até Conferência Inferno subir ao palco. Francisco Lima, José Miguel Silva e Raúl Mendiratta percorrem o país com a “pedra preciosa” que é o seu último álbum, Pós-Esmeralda. Lá em cima, sob o calor das cinco da tarde, levam-nos por meandros sonoros fascinantes. Desde “Fantasias” a “Distopia”, paisagens da pandemia, ao “Apocalipse” de eras passadas, ao estado “Ausente” que dissociamos num concerto destes. Podíamos estar pela noite do Porto neste momento. Falámos um pouco com eles no pós-concerto, com a entrevista disponível aqui.
Troca de língua para o francês dos Nouvelle Vague, a subir ao palco principal do Vodafone Paredes de Coura. A tarefa para este concerto era simples: fazer-nos revisitar temas clássicos de post-punk e new wave, mas interpretados de forma suave. Suavidade essa que pode ser complicada de explicar, mas a verdade é que Nouvelle Vague despem os temas de qualquer tipo de peso que tenham. As batidas pesadas dos anos 70 e 80 acalmam e embalam quem por ali fica.
Mas o embalo não durou muito tempo, com os californianos Allah-Las a subir ao palco secundário. Nove anos se passaram desde o último concerto no habitat natural da música, e as expectativas eram elevadas. De forma descontraída e cool, soaram os primeiros acordes e o público começou a viagem sonora até sítios longínquos e quentes. Tudo nesta banda grita retro e cultura surf. Desde as camisas e calças de linho aos movimentos corporais bem fluídos e, claro, a música que nos chega até aos ouvidos. Num crescendo de energia, os Allah-Las foram conquistando mais festivaleiros ao longo do concerto, com um final estrondoso. Já que estávamos rodeados pela estética da cultura surf, não podia faltar o crowdsurfing – que, no último tema, surgiu sem qualquer tipo de inibições. Entre pessoas nas alturas e o mosh por baixo, os Allah-Las saíram de palco quentes pela recepção sentida.
Cat Power tem uma abordagem diferente à ciência do cover. A razão da distinção nesta maneira de “vestir” música em segunda mão mostra-se em palco, na dor apaixonada ao cantar “She Belongs To Me” ou “It ‘s All Over Now, Baby Blue”. Porém, Cat Power afastou-nos da conversa que “teve” com Bob Dylan há 58 anos atrás (no seu concerto em Manchester, na “Free Trade Hall”), e por entre problemas técnicos, mudanças do acústico ao elétrico, esta confissão não foi ouvida por todos.
Beach Fossils levaram-nos de volta a um entusiasmo indie/shoegaze de edições passadas. Em 2017 lançaram “Somersault”, uma banda sonora à moda de Paredes de Coura, mas o bilhete definitivo para palcos portugueses foi “Bunny”, álbum lançado no ano passado. Dustin Payseur trouxe os sogros de Nova Iorque para um concerto que nos deixou em êxtase de memórias. É música recente que na atmosfera certa renova este lugar, mas a retrospectiva depois de Beach Fossils é clara: são estes concertos que nos aquecem ao longo dos anos.
Por entre fortes aplausos e preparos para o mosh pit, os tão aguardados IDLES subiram ao palco nesta noite de 16 de Agosto. Regresso explosivo da banda punk de Bristol que, sem pedir licença, ocupou aquele palco durante 1 hora, para nos fazer usar as réstias de energia que tínhamos no corpo. Aliás, não só a nossa, como a da banda. Entre Mark Bowen que parecia que sofria de F.O.M.O (fear of missing out) e tinha de estar constantemente a surfar por cima do público, à companhia de Lee Kiernan no crowdsurfing, Joe Talbot, com o seu cabelo rosa e corpo coberto de tatuagens, não parava em palco. Quando não estava a cantar a pulmões bem abertos, o microfone balançava de um lado para o outro, nas suas mãos, desafiando as capacidades do fio que Joe segurava. O post punk de IDLES é carregado de dor e sentimentos, deixando Talbot completamente vulnerável em palco. Navegando entre temáticas pesadas, como masculinidade tóxica, racismo – com o caso particular do Reino Unido – perda e o impacto na saúde mental, não nos esqueçamos nunca de entoar bem alto o cessar-fogo e o direito ao Estado da Palestina. Palavras de ordem para os momentos mais negros que vivemos. Numa nuvem de poeira, causada pelos mosh pits que teimavam em não terminar, os IDLES saíram coroados por mais um concerto inesquecível neste festival.
E das poeiras do deserto, Mdou Moctar chegou até ao palco secundário, numa hora bem tardia – mas que fez aguentar todas as dores e pó acumulado do concerto anterior, para presenciar esta viagem musical. Aparentava uma timidez ao encarar o público, nos momentos iniciais, mas ao dedilhar na sua guitarra tudo mudou. A confiança foi sendo conquistada, o discurso para com a plateia foi aumentando ao longo do concerto e Moctar brilhou nesta noite. A mestria com que toca o instrumento que sempre o acompanhou, é de aplaudir. Por entre cânticos de força e cariz político, Mdou canta as suas dores, as dificuldades do seu povo e do seu país. Acompanhado por mais 3 músicos em palco, as emoções estão à flor da pele e somos transportados para uma paisagem quente e poeirenta – com o Tuareg Rock a guiar-nos. Paredes de Coura apostou, nesta edição, em nomes que fogem da dita música ocidental e da qual somos bombardeados todos os dias nas plataformas de streaming e rádios. Mdou Moctar, e a quantidade de pessoas que ficaram naquele palco para ver esta atuação, são a prova de que há espaço para todos nesta pequena maravilha da natureza abraçada pela música. O mundo é feito de música, e Paredes de Coura deve ser o local para o celebrar.
Ainda tempo para ouvir Tramhaus, post-punk de Roterdão que se aventura agora em “The Last Exit”, o LP de estreia de Lukas Jansen, Nadya van Osnabrugge, Julia Vroegh, Micha Zaat e Jim Luijten. Aqui a ideia da música ao vivo resguarda-se num som pensado na sociedade obcecada no digital. Mas fora do estúdio, os cinco tocam sempre concertos diferentes – um ponto em comum com Mdou Moctar – e Paredes de Coura não fugiu à norma punchy e explosiva. Pudemos falar com eles, sobre novos trabalhos, concertos em Portugal e expectativas para este momento.
Dia 4: Nostalgia Courense
Ao quarto dia, o festival das margens do Taboão lembra-nos que celebrar a música moderna, ao fim de 31 anos, apura sentimentos de saudade, e nas últimas horas – antes dos confetti, vídeos, balões- há música que nos faz pensar nas possibilidades do próximo cartaz, logísticas melhoradas de campismo, sítios e pessoas que anseiam regresso.
Antes disso, o último dia com Baxter Dury a pregar-nos uma rasteira. O primeiro momento do palco principal foi excepcionalmente bem escolhido. Umas quantas “Reasons to Be Cheerful”, entregues de bandeja por Baxter, que carrega um legado como um senhor de palco. De um stage plot minimalista (ouvíamos alguns temas gravados de fundo), sobrava muito espaço para o músico ocupar. Fê-lo magnificamente, com a sua spoken word a dançar uma espécie de tai chi irrequieto, até ao tema final “Baxter (these are my friends)”, para nos lembrar de dançar também.
Batidas terminadas, cair da noite, e o público preparado para receber Slowdive. Uma noite para sonhar, com as melodias etéreas e acompanhadas pelas guitarradas da banda inglesa, mítica na cena shoegaze dos anos 90. A verdade é que ainda não parece real escrever sobre este concerto, tal era a imersão no mesmo. Andámos a saltitar entre as duas vidas de Slowdive, com temas do seu mais recente trabalho “everything is alive” (2023), e a recuperar os hinos dos anos 90, retirados do álbum de 1993 “Souvlaki”. O tema “Souvlaki Space Station” ainda arrepia qualquer um, com a voz doce de Rachel Goswell a combinar na perfeição com Neil Halstead. Há um certo conforto em saber que Slowdive estão cá, que continuam a dar-nos música para sonharmos sem teto, e que os pudemos ouvir, mais uma vez, no céu aberto de Paredes de Coura, numa suspensão total do tempo e realidade.
Antes do fecho do dia, Jesus and Mary Chain e a falácia da atenção. Os irmãos Jim e William Reid lançaram este ano “Glasgow Eyes”, que neste concerto dividiu a setlist de temas intemporais do grupo escocês. A voz de Jim Reid permanece imaculada desde os anos 90, o som cristalizado na distorção de temas como “Sometimes Always” ou “Darklands”, com direito à voz de Goswell novamente em palco para “Just Like Honey”. O silêncio que se instalou no recinto foi um ponto forte para a banda, que estava despreocupada com a possibilidade de serem ignorados ao lado das novidades do festival minhoto. Rapidamente percebemos a trivialidade em respeitar algo que por si só é importante para o decurso histórico. Foi um ótimo concerto que pudemos contemplar pelo que ouvimos.
Fontaines D.C. foram o momento do festival. A qualidade exímia dos irlandeses em entregar uma hora e quinze cronometrada de boa música marcou esta edição do Vodafone Paredes de Coura. “Romance” saiu há cinco dias, e é uma curva inesperada e ambiciosa do quinteto liderado pela voz de Grian Chatten. Sem vertigens, podemos assistir a esta nova paisagem de Dublin, uma mudança calculada por quem nos trouxe o incisivo “A Hero ‘s Death” e o arrebatador “Skinty Fia”. Neste concerto, percorreram de tudo um pouco, e ouvimos o “gorillesco” “Starburster”, a máquina de feedback em “A Lucid Dream”, a explosão de “Big”, “Favourite” para “isqueiros” acesos. A nova direção está por apurar e é emocionante.
Terminada mais uma edição de Vodafone Paredes de Coura, foi tempo de regressar e descansar dos dias intensos vividos naquele habitat. Enquanto uns pensam nas melhorias do festival, outros leem crónicas, ouvem em loop as bandas que viram e descobriram, e aguardam pelo próximo ano, para que possam regressar à rotina idílica das margens do Taboão.