Palco RUC 2021: A Inclusão que reside na Diferença
Na reta final de um 2021 adverso para os festivais, caía a chamada para mais uma Queima das Fitas e inevitavelmente a RUC respondeu para oferecer uma alternativa às festividades do palco principal. Disruptivo, invulgar e delirante, foram os princípios que encaminharam os preparativos para o regresso do Palco RUC ao cantinho habitual à beira-rio […]
Na reta final de um 2021 adverso para os festivais, caía a chamada para mais uma Queima das Fitas e inevitavelmente a RUC respondeu para oferecer uma alternativa às festividades do palco principal. Disruptivo, invulgar e delirante, foram os princípios que encaminharam os preparativos para o regresso do Palco RUC ao cantinho habitual à beira-rio para aqueles que procuram a diferença no maior evento da cidade, anunciado para 22 a 25 de Outubro em iminência. Com o tempo em fuga e em moldes incertos do constrangimento pandémico, estava na mira voltar a fazer a festa acontecer.
Cumprindo a habitual premissa de divergência, o olhar sobre o alinhamento deste Palco RUC incidiu na inclusão, ao apostar na criação de um espaço que quem passa intui ser bem mais confortável que o das massas, e fica. Ou não fosse este o palco que aponta a lente para nomes em efervescência e não contrabandeados; artistas em erupção e não espezinhados; que procuram nas margens e não na direção que sopra o vento. Tal aconteceu logo no dia de abertura – 22 de outubro, que contou com as performances de Misfit Trauma Queen, baterista solitário e ritmado no EBM cavernoso; Arrogance Arrogance, nome da cena noturna do Porto além de arquiteto da Ácida; e Sereias que, depois de uma estreante escuta ao vivo nos Jardins Efémeros (Viseu) no verão desse ano, não havia como não resgatá-las para este nosso palco. No entanto, por mais que insistamos que inclusão, diversidade e empatia são premissas da programação que faz este evento, e apesar de julgarmos que o contrabando, o assalto da misoginia e desse tão fácil-confortável lugar em que vive o cisgenerismo ficaria no restante recinto, esta foi a noite em que esse contrabando quase atingiu os corpos levados ao nosso palco; a noite acabaria por fechar com o DJ RUC Operário Febril que enviou a massa crescente de pessoas do primeiro dia do festival para um forte delírio industrial.
O caminho alternativo aos que entram no Parque da Canção manteve-se na noite de 23 de outubro, com 7777の天使 que, à semelhança de Sereias, viu o seu nome no cartaz de 2020 ser adiado por tempo indefinido, e se seguiu com a transgressora Ecstasya e ainda Ascendant Vierge – tendo esta sido a primeira passagem do duo integrado por Paul Seul (Casual Gabberz) e Mathilde Fernandez por Portugal – um concerto absolutamente mágico que deixou o público envolvido em euforia sem querer colocar término a essa noite, o qual viria com Saw, Luís Marujo e Bernardo Matos, a trazer pela primeira vez ao vivo a plataforma rave dos 107.9fm – o programa Cyberia.
A noite de 24 de outubro fez-se de O Gringo Sou Eu, que no verão desse ano tinha já criado um ciclo de oficinas de produção musical com jovens, seguido de um concerto, no âmbito do Trampolim E8G – Projeto de integração social de crianças e jovens oriundas de contextos vulneráveis – em particular aquelas que vivem o Bairro do Ingote, e com o qual, aliás, a RUC vem desenvolvendo uma parceria, com vista a dar-lhes voz, por via do locutor João Gaspar. A notar ter sido que tanto teve o artista ao nível do público quer o público em cima do próprio palco, envolto nas sonoridades híbridas entre o hip-hop e a electrónica com uma forte mensagem social.
Apesar da impossibilidade de satisfazer a súplica por cavalos com que idilicamente desejavam subir a palco, nem por isso o concerto d’ As Docinhas foi menos impactante – e a prová-lo, um “Isso! Gritem por Viana!” – encetou aquela que terá sido a atuação mais provocadora numa das noites com maior afluência, com letras cantadas em uníssono pelo público, uma dinâmica de palco orgânica entre Cire e Lee, o pole-dancing de Ana Calvete, as várias referências aos tradicionalismos de Coimbra como a praxe e o traje em tom satírico e as emoções fortes no tema “Alexander” só podiam deixar o público à espera de um final dançante e quente que veio nas mãos de King Kami, arrasando o recinto mostrando a sua capacidade inigualável de movimentar públicos, um nome de referência no atual panorama das festas e festivais – definitivamente a acompanhar.
O final da penúltima noite chegaria com Caucenus, nome chave para a produção eletrónica em Coimbra, com lançamentos editados através da XIII e da local CIGA239.
A curadoria RUC para 2021 na Queima das Fitas chegaria ao fim com o dia 25 de outubro que se mostrou ser o de menor afluência ao recinto. Ainda assim, revelou-se uma noite igualmente feroz e o menor número de pessoas que chegavam trouxe uma união calorosa de corpos e movimentos logo com a abertura da noite, esta a cargo de Puta da Silva, poderosa figura emergente na música queer e que trouxe as vozes da luta numa performance gritante, transgressiva, num concerto muito especial e que marcou a primeira subida ao palco da sua banda. A libertação dos corpos na sua música calorosa levou a uma passagem orgânica para co-fundadora da Mina Suspension, da Rádio Quântica e do Planeta Manas: chegava-nos Violet com a sua eletricidade e perícia para aquecer a noite, como se a transladar para cá o ambiente íntimo que pauta o contexto noturno alternativo lisboeta.
Chegada de Berlim, subia ao palco Salome – produtora e DJ de Tbilisi da Geórgia, cidade conhecida pela sua comunidade de música eletrónica; a residente da Herrensauna veio protagonizar um andamento berlinense que surpreendeu um público já por si expectante. A cadência imparável foi só finalizada por Assafrão na qualidade de DJ RUC, artista de Coimbra que já nos presenteou com lançamentos na Naivety, Mera, Ciga239 e Weathervane Records.
O dia prosseguiria com a pós-produção e descanso intercalados que levariam uma semana a repor as emoções e as forças, volvidos quatro dias de misto psicológico, tudo para voltar a um palco – um palco que tantos une e tantos traz; que é razão que justifica a deslocação dos que vêm de mais ou menos longínquas pontas só para nesse público, nessa energia e libertação que lhes são intrínsecas, se envolver. Oxalá volte ele a unir e fique longe do assalto do corpo. É com essas traves mestras que o Palco RUC regressa em maio, e foi com elas em mente que se compôs uma programação que brevemente será revelada.