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Da utopia da coexistência à confirmação da Fénix: Crónica sobre o concerto de apresentação da grelha regular 2021/22

Na terça-feira que passou, dia 12 de outubro, a Real República Rápo-Táxo foi palco da Festa de Apresentação da Grelha Regular 2021/22 da Rádio Universidade de Coimbra. A festa iniciou-se nos Jardins da Associação Académica de Coimbra (AAC) com Tânia Rocha a representar a sua Malandragem… Ó Malandragem. A noite ficou marcada pelo concerto de João Não e Lil Noon, no qual se apresentou o disco “terra-mãe”, tendo ainda contado com os Dj sets de Eduardo Antunes, pelo Maldito Mojito, João André Oliveira, em nome do Mellow, Lexi Narovatkin, pelo Vektor, e por fim Diogo Barbosa, com Trance a fechar o serão e a principiar a alvorada.

Noite adentro se respirou música, apesar das iniciais forças pouco adjuvantes à concretização do evento, as quais talvez nos levem a crer que… o diferente  atormenta. Há uma certa ordem ou estado das coisas que o diferente vem perturbar. Não se sabe exatamente o que é perturbado, de que maneira e porquê – e daí o tormento. Naquele lusco-fusco de 12 de outubro, tudo parecia orientar-se com vista ao desconfinamento do corpo reprimido, à libertação e à catarse que a Peste impediu. Eram 17 horas quando Tânia Rocha dava o primeiro empurrão aos corpos presos que vinham chegando, estreando a mesa com cálidos e transatlânticos ritmos de Malandragem… Ó Malandragem – que se escuta no éter dos 107.9 fm às segundas, pelas 12 horas. Era o prenúncio da possibilidade de calar o acanho e resgatar o corpo preso, mas ávido por encontrar outros com os quais comungar o lugar e a noite; ávido pelo movimento que o sossego dos tempos, não tão distantes, surrupiou. Estreou-se a pista, naquele Jardim do qual se intuía a representação total daquilo a que é chamado a representar, mas que a libertação dos noctívagos corpos que se juntavam, atormentou. Naquele Jardim onde se supôs a coexistência do costumeiro com o novo, a abertura ao segundo e não a inquestionável resignação ao primeiro. 

Sobre computadores, cabos, ínfimos detalhes que ali se haviam montado, escolhido e preparado, luziam densas camadas de devoção e esforço dos corpos que se moveram para tornar possível a libertação dos outros. Apesar de densas, essas camadas permaneciam invisíveis ou pouco dignas daquele Lugar. De mãos atadas, corpos novamente cativos e diante da consciência de que a coexistência não iria além da quimera, aquele fim de lusco-fusco pedia resiliência e reinvenção. Ouvi algures que é no caos que se tende a encontrar talento, como súbita epifania que vem de onde não sabemos mas que vem na hora certa. Espécie de Fénix que morre por esse mesmo caos e é também dele que renasce – momento em que é já outra: vira signo de firmeza, de resistência. O dia já era todo breu quando a nossa Fénix surgiu na generosa República Rápo-Táxo. Sem mais delongas, perto das 21 horas soavam temas de “Terra-Mãe”, álbum lançado este ano pelos gondomarenses João Não & Lil Noon. Foi em tempo de confinamento, nomeadamente “em momentos que mais serviram como fuga à realidade” que nasceram os temas que integram o álbum, à luz do que revelam João Não e Lil Noon em “Intro”, faixa que enceta “Terra-Mãe”. Além deste álbum, também este ano foi lançado o single Ouvido, fruto da parceria com Beiro. A recente emergência no panorama musical português, que poderia ser um entrave à aclamação de João Não & Lil Noon, traduziu-se no reverso: letras decoradas e cantadas em polifónica comunhão.

Pouco depois das 22, Eduardo Antunes presenteava-nos com um set escolhido para representar Maldito Mojito – programa que se escuta às sextas-feiras, pelas 18 horas, distinto pela viagem de procura pelo que de tropical e soalheiro existe no universo musical, onde as fronteiras se esfumam para unir. A prová-lo, foi ao som de Mudbira, tema das irmãs iemenitas-israelitas A-WA, que se alcançou um certo clímax ou apogeu da desinibição estimulada por este set. Parece haver na música algo que transgride o forasteiro da  língua que faz o lírico; algo que nos fala, que diz coisas, que se torna nosso ainda que nos mantenha alheios à língua. Algo intangível, inconcreto, que como catéter algo nos injeta e comove. Substância urticante que nos encanta. Nos pasma. Serena. Possui? 

Por volta das 23h30, a mesa passou para as mãos de João André Oliveira, a representar o Mellow – programa em que RnB e Soul aquecem as 22 horas de todas as quartas-feiras. À Meia noite e vinte, Lexi Narovatkin apresentava-nos o renovado Kepler, agora intitulado Vektor, a escutar todas as terças e quintas pelas 18 horas. A ode ao Techno destacou Dave Clarke e Chicks on Speed, na faixa What Was Her Name, bem como lançamentos recentes, como é o caso de Sadism, tema lançado no passado mês de setembro e que nasce da colaboração entre Locked Club e Any Act; Ketamino Bianco, de DJ Ketaflush, e ainda Aw Shit, de Mean-E, que surge na compilação “Thee Alpha and Thee Omega Vol I”. 

Até ao cair da alva que repôs os astros naquele canto sexagenário da Castro Matoso, aconteceu aos que escutam: a supressão do que há de agrura no quotidiano, o encrespar dos poros, a entrega despida e inadvertida ao apoteótico que puxa, que suga e arranca daqui para um outro lugar sem tempo, onde o corpo – autómato de coisa ininteligível, quase metafísica, independente da vontade, que pede e suplica, e o resto cede e obedece, até que amanhece, nesse outro lugar – um lugar que não oprime, que confirma a Fénix, onde a libertação noite afora soa, impera, ecoa, numa apologia à conciliação, ao belo que emana da coexistência dos seres, do afrouxar dos muros, da partilha dos corpos, da polifonia, da comunhão do espaço.

Fotografia: Rodrigo Silveira

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